O GLOBO - 18/02
Saber o que comeram os funcionários nos voos da FAB, à custa dos impostos, é questão de segurança nacional
Na semana passada, após pressão da sociedade, 467 deputados federais votaram nominalmente a cassação do mandato do deputado Natan Donadon. Com a cara de pau peculiar à maioria, seis meses depois de considerarem natural manter como “colega” um condenado pelo Supremo Tribunal Federal, mudaram radicalmente de opinião. Certamente, a inversão do comportamento não ocorreu pelo florescer repentino das consciências dos nobres parlamentares, mas sim pelo medo da opinião pública nas próximas eleições. O fato faz lembrar a frase de um juiz americano, Luiz Brandeis, proferida há mais de um século: “A luz do sol é o melhor dos desinfetantes.”
No Brasil, leis recentes ampliaram a transparência da gestão pública. A Lei Complementar 131, de 2009, obrigou a União, estados e municípios a publicarem suas contas na internet. A chamada Lei de Acesso à Informação (lei 12.527/2011) permitiu que qualquer cidadão faça solicitações ao Estado e este seja obrigado a respondê-las ou negá-las por escrito. Na prática, porém, obter esclarecimentos da administração pública — muitas vezes banais — ainda é uma odisseia.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e o BNDES, por exemplo, consideraram confidenciais as condições do financiamento de R$ 1,6 bilhão que o Brasil concedeu ao governo de Cuba para a construção do Porto de Mariel. O valor repassado à ditadura cubana é três vezes maior do que todos os investimentos em 2013 das Companhias Docas, responsáveis por administrar 18 dos 34 portos brasileiros. Somente em 2027, dois anos antes do prazo final para a quitação da dívida, é que a sociedade brasileira conhecerá os termos dessa operação caribenha misteriosa.
A Presidência da República também tem segredos. No ano passado, o Contas Abertas tentou saber o que comiam e bebiam os burocratas e convidados durante as viagens nos jatinhos da Força Aérea Brasileira (FAB). Somente o contrato do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI-PR) com a empresa RA Catering prevê o valor de R$ 1,9 milhão. No cardápio estão guloseimas como coelho assado, costeleta de cordeiro, rã, pato, sorvetes Häagen-Dazs e canapés de camarão e de caviar, entre outras. Como só é pago o que for degustado, foram solicitadas à GSI-PR, por meio da Lei de Acesso à Informação, cópias das notas fiscais e faturas em que estão discriminadas as iguarias que realmente foram consumidas, ao custo de R$ 824.600, desde a assinatura do contrato em outubro de 2013. Em resposta, o Palácio do Planalto considerou a informação “sigilosa” por colocar “em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares”. Ou seja, saber o que comeram os funcionários da Presidência da República nos voos da FAB, à custa dos impostos que os brasileiros pagam, é questão de segurança nacional.
Os absurdos não param por aí. Há vários anos, as Leis de Diretrizes Orçamentárias mencionam claramente que cidadãos e entidades sem fins lucrativos podem ser habilitados a consultar diversos sistemas informatizados do governo federal, para fins de acompanhamento e fiscalização orçamentária. Assim, o presidente da OAB, Marcus Vinicius Coelho, solicitou acesso a esses sistemas para uso da Comissão Especial de Controle Social dos Gastos Públicos, do Conselho Federal da OAB. No entanto, o Ministério do Planejamento negou o ingresso aos sistemas com uma desculpa esfarrapada. A meu ver, cabe à OAB recorrer à Justiça para que a Lei seja cumprida.
No caso dos estados e dos municípios, a transparência também caminha à meia-boca. Quanto à Lei de Acesso à Informação, quase dois anos após a sua vigência, sete estados e nove capitais ainda não a regulamentaram. Entre os municípios com mais de cem mil habitantes, apenas 24% — incluindo capitais — já o fizeram. O próprio Supremo Tribunal Federal, em péssimo exemplo, ainda não regulamentou a lei, sob a justificativa de que será objeto de análise pela “Comissão de Regimento”. Em relação aos portais, várias prefeituras não possuem sites ou, se existentes, são de péssima qualidade, inviabilizando o controle social.
Enfim, o que tanto querem esconder os nossos homens públicos? O perigo é que as novas leis de transparência acabem, como muitas outras, restritas aos anais do Congresso, às páginas do Diário Oficial e às estantes dos advogados. Tal como dizia Luiz Brandeis, a luz do sol é um ótimo detergente e a administração pública brasileira — ninguém duvida — precisa ser desinfetada.
Saber o que comeram os funcionários nos voos da FAB, à custa dos impostos, é questão de segurança nacional
Na semana passada, após pressão da sociedade, 467 deputados federais votaram nominalmente a cassação do mandato do deputado Natan Donadon. Com a cara de pau peculiar à maioria, seis meses depois de considerarem natural manter como “colega” um condenado pelo Supremo Tribunal Federal, mudaram radicalmente de opinião. Certamente, a inversão do comportamento não ocorreu pelo florescer repentino das consciências dos nobres parlamentares, mas sim pelo medo da opinião pública nas próximas eleições. O fato faz lembrar a frase de um juiz americano, Luiz Brandeis, proferida há mais de um século: “A luz do sol é o melhor dos desinfetantes.”
No Brasil, leis recentes ampliaram a transparência da gestão pública. A Lei Complementar 131, de 2009, obrigou a União, estados e municípios a publicarem suas contas na internet. A chamada Lei de Acesso à Informação (lei 12.527/2011) permitiu que qualquer cidadão faça solicitações ao Estado e este seja obrigado a respondê-las ou negá-las por escrito. Na prática, porém, obter esclarecimentos da administração pública — muitas vezes banais — ainda é uma odisseia.
O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e o BNDES, por exemplo, consideraram confidenciais as condições do financiamento de R$ 1,6 bilhão que o Brasil concedeu ao governo de Cuba para a construção do Porto de Mariel. O valor repassado à ditadura cubana é três vezes maior do que todos os investimentos em 2013 das Companhias Docas, responsáveis por administrar 18 dos 34 portos brasileiros. Somente em 2027, dois anos antes do prazo final para a quitação da dívida, é que a sociedade brasileira conhecerá os termos dessa operação caribenha misteriosa.
A Presidência da República também tem segredos. No ano passado, o Contas Abertas tentou saber o que comiam e bebiam os burocratas e convidados durante as viagens nos jatinhos da Força Aérea Brasileira (FAB). Somente o contrato do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (GSI-PR) com a empresa RA Catering prevê o valor de R$ 1,9 milhão. No cardápio estão guloseimas como coelho assado, costeleta de cordeiro, rã, pato, sorvetes Häagen-Dazs e canapés de camarão e de caviar, entre outras. Como só é pago o que for degustado, foram solicitadas à GSI-PR, por meio da Lei de Acesso à Informação, cópias das notas fiscais e faturas em que estão discriminadas as iguarias que realmente foram consumidas, ao custo de R$ 824.600, desde a assinatura do contrato em outubro de 2013. Em resposta, o Palácio do Planalto considerou a informação “sigilosa” por colocar “em risco a segurança de instituições ou de altas autoridades nacionais ou estrangeiras e seus familiares”. Ou seja, saber o que comeram os funcionários da Presidência da República nos voos da FAB, à custa dos impostos que os brasileiros pagam, é questão de segurança nacional.
Os absurdos não param por aí. Há vários anos, as Leis de Diretrizes Orçamentárias mencionam claramente que cidadãos e entidades sem fins lucrativos podem ser habilitados a consultar diversos sistemas informatizados do governo federal, para fins de acompanhamento e fiscalização orçamentária. Assim, o presidente da OAB, Marcus Vinicius Coelho, solicitou acesso a esses sistemas para uso da Comissão Especial de Controle Social dos Gastos Públicos, do Conselho Federal da OAB. No entanto, o Ministério do Planejamento negou o ingresso aos sistemas com uma desculpa esfarrapada. A meu ver, cabe à OAB recorrer à Justiça para que a Lei seja cumprida.
No caso dos estados e dos municípios, a transparência também caminha à meia-boca. Quanto à Lei de Acesso à Informação, quase dois anos após a sua vigência, sete estados e nove capitais ainda não a regulamentaram. Entre os municípios com mais de cem mil habitantes, apenas 24% — incluindo capitais — já o fizeram. O próprio Supremo Tribunal Federal, em péssimo exemplo, ainda não regulamentou a lei, sob a justificativa de que será objeto de análise pela “Comissão de Regimento”. Em relação aos portais, várias prefeituras não possuem sites ou, se existentes, são de péssima qualidade, inviabilizando o controle social.
Enfim, o que tanto querem esconder os nossos homens públicos? O perigo é que as novas leis de transparência acabem, como muitas outras, restritas aos anais do Congresso, às páginas do Diário Oficial e às estantes dos advogados. Tal como dizia Luiz Brandeis, a luz do sol é um ótimo detergente e a administração pública brasileira — ninguém duvida — precisa ser desinfetada.
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