quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O gazeteiro encouraçado - FERNANDO ORATAVO NETO

Author: Carlos Newton |
 
 Fernando Orotavo Neto
Na França do século XVIII, antes da revolução mais célebre da história, publicações anônimas chamadas pelo nome de libelos (et pour cause), desafiavam a censura, denunciando um rei impotente, uma rainha luxuriosa, nobres depravados e um clero ganancioso e corrupto.
Um dos libelos mais famosos e vendidos do Ancien Régime foi exatamente “O Gazeteiro Encouraçado” (Le Gazetier Cuirassé). Em 1771, ano de sua primeira edição, o libelo já identificava a França com o despotismo e provocava a monarquia, declarando ser impresso “a cem léguas da Bastilha, sob o signo da liberdade”, isto é, em Londres (onde a liberdade de imprensa já era uma conquista consolidada), bem longe, portanto, do maior símbolo do autoritarismo francês, a torre da prisão, onde muitas cabeças foram decapitadas.
Se as ideias de Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Diderot e D’Alembert constituíram o arcabouço da filosofia iluminista, contribuindo para a ascensão de um novo estado democrático, em contraposição ao estado absolutista, então reinante, não se pode vacilar na certeza inabalável de que as anedotas escandalosas da corte francesa, retratadas nos libelos, abriram e pavimentaram o caminho para a concretização da “liberdade, fraternidade e igualdade” – palavras que depois viriam a se tornar o próprio lema da revolução.
Por meio dos libelos, articulistas sem nome e rosto (mas com coragem!) promoviam, em tom jocoso, a discussão acerca da crise política e moral que assolava a França, revelando o quadro de uma sociedade corroída pela incompetência, imoralidade, sordidez e impotência. Sem medo de confrontarem os poderosos, os libelistas – hoje, reconhecidos como precursores do jornalismo investigativo – se desincumbiram da importante função de descortinar a corrupção dos governantes aos olhos do povo. E assim o fizeram, “na anatomia horrenda dos detalhes”, para repetir o poeta Augusto dos Anjos.  O luxo, as riquezas, os privilégios, as intrigas, as nomeações nobiliárias desprovidas de qualquer mérito, as viagens em grande estilo, o desperdício do dinheiro público, o superfaturamento de obras, as comissões e os presentes recebidos pelos ministros e secretários do governo. Está tudo lá,comme il faut! (como é preciso!).
Com efeito, depois de ler a notícia de que o Conselho do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro arquivou o pedido de investigação sobre as suspeitíssimas viagens do governador do Estado à Paris, por 4 (quatro) votos a 2 (dois), fico a pensar como esses gazeteiros retratariam nossos governantes de hoje. O que escreveriam, que anecdotes scandaleusescontariam, ainda a mais se pudessem pegar carona numa máquina do tempo e, saídos diretamente da França do século XVIII, lhes fosse permitido desembarcar no Estado do Rio de Janeiro, em pleno século XXI?
Será que ao menos perguntariam, segundo a fórmula atribuída a Erving Goffman, o que está acontecendo aqui? Ou será que a proximidade com Bangu e a longa distância daqui até Londres (muito mais que cem léguas) não permitiria que pergunta alguma fosse feita, por esses delicieuses gazeteiros, sem prejuízo de suas cabeças ou liberdade?
Mas como este é um artigo de ficção – e qualquer semelhança com viagens à Paris, jantares nababescos no Hotel de France, em Mônaco, regados aos melhores vinhos, champagne e caviar, passeios com helicópteros do Governo para levar cachorrinho de estimação para suntuosas casas de praia, tragédias na Bahia reveladoras de ligações perigosas (entre um Chefe de Governo e um fornecedor do Governo), existência de cavalos puro-sangue na hípica e guardanapos na cabeça, é mera coincidência (disse o MP, muito mais decididamente do que qualquer especialista ou tratado) – resta-nos, a todos, repetir Tartuffe, célebre personagem do genial Molière (neé Jean-Baptiste Poquelin), considerado o maior impostor (ou melhor: hipócrita) de todos os tempos, quando, do alto de sua patifaria intelectual, decretou:“Le scandale du mondeest ce qui fait l’offenseEt ce n’est pas pécher, que pécher en silence” (Tradução livre: O escândalo do mundo é que faz ofensa; e não é pecador, quem peca em silêncio).
 Post Scriptum – Mas quem precisa de perguntas (ou mesmo de gazeteiros) quando todos sabemos, acreditamos e compreendemos, que “o governo não mistura questões privadas com públicas”; como, aliás, teve oportunidade de declarar através de sua assessoria de imprensa (D’aprés Tartuffe, é claro). Ora, se o governo diz; dito está!

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