Lembro-me bem de como eu sentia uma pontinha de inveja do Augustinho nos tempos de colégio, no final dos anos 70. É que Augustinho era o único pirralho que possuía tênis All Star, motorista particular e guarda-costas. Eu ia a pé pra escola, na guarda do bom e enigmático Deus, do meu irmão mais velho e de um trevo de quatro folhas enfiado à força dentro da carteira (coisas de mãe, vocês sabem).
Filho do Governador do Estado, Augustinho sempre namorava as meninas mais bonitas da escola, de preferência, as mais ricas, porque rico gosta de namorar rico, é uma atração natural. Eventualmente, em situações de puro vacilo — só por sacanagem, só pra descarregar a serpentina e cair fora — um homem rico come uma mulher pobre.
Por que motivo Augustinho cismava em colar em mim, justo em mim, filho de bancário com professora de escola pública (pai, mãe, eu amo vocês!), eu não saberia explicar. Pra me comer é que não era (graças ao Pai...). Acho que era porque, naquele tempo, eu ainda escrevia poesia e Augustinho, apesar de possuir as chaves do cofre, era burro como uma porta.
Eu levava pão com mortadela dentro da lancheira; Augustinho torrava vinte paus com empadinhas de camarão e coca-cola. Nas aulas de Educação Física, eu jogava bola calçando o famoso, popular e baratíssimo tênis Kichute; Augustinho driblava sem se desfazer da calça de linho e do sapato social de bico fino (“uma puta blasfêmia”, os meninos diziam). Escoradas no alambrado, as garotas suspiravam ao vê-lo errar mais um gol. O sujeito, além de burro, como eu já disse, era grosso que só.
Eu fazia as tarefas de casa; Augustinho as copiava no banheiro da escola. Eu estudava os conteúdos das matérias; Augustinho colava tudo de mim nas provas. Eu levava uma maçã pra professora; Augustinho me aparecia com um pacote de waffles sabor baunilha (o que, diabos, seria baunilha, nenhum professor jamais me explicou).
Eu usava um lápis Faber Castell número 2; Augustinho ostentava a sua Mont Blanc, presente da falecida avó. Nas férias, eu ia pescar e andar a cavalo na roça; Augustinho esbaldava-se com as turkey legs e as montanhas russas da Disney. Eu passava de ano; Augustinho, idem. Então, deveria estar tudo certo, certo?
Apesar de não vê-lo há anos desde que nos formamos no ginasial, quando eu soube que Augustinho se encontrava preso numa cela da Polícia Federal, tive um sentimento inusitado, senti uma estranha misericórdia por ele (que Augustinho não leia este texto e não descubra este pormenor, que, certamente, o fará se sentir deveras diminuído).
Não sei o que me deu na cachola, mas passei pelo antigo Mercado Municipal, no centro da cidade, que vendia umas empadinhas deliciosas, e comprei umas quatro de camarão, além, é claro, da velha e gelada coca-cola, sem a qual é absolutamente impossível se viver neste mundo, né mesmo?
Conversei com Augustinho pelo telefone, separados por uma divisória de vidro, e a situação constrangedora me lembrou logo uma cena do filme “O Expresso da Meia Noite” de Alan Parker, na qual o protagonista, uma vez trancafiado, esfrega-se libidinosamente na divisória de vidro da sala de visitas, ensandecido de tesão pela namorada que levanta a blusa do outro lado. Não. Eu não quis excitar o Augustinho, até porque, apesar de tão diferentes, ainda guardávamos certa consideração um pelo outro, e ambos gostávamos — e gostamos — de mulher.
Mas acabei deixando o Augustinho excitado noutro sentido, pois o sujeito, ao me reconhecer, desandou a chorar que nem mulherzinha (faço questão de usar esta expressão machista, pejorativa, pois era assim que ele falava pra mim naqueles longínquos anos de escola). “Qué-qué-isso, Augustinho?”, eu perguntei a desaprovar aquele pastelão.
O pai de Augustinho, o Doutor Augusto (rá-rá-rá...), já não era mais o Governador do Estado, muito menos um doutor, diga-se de passagem, pois estudara quase nada na vida, embora tivesse se tornado um pecuarista indecentemente rico. Ele dizia gostar mais do cheiro de bosta de vaca do que de perfume francês, porque bosta de gado, no caso dele, era igual a dinheiro.
Acontece que Papai Augusto já tinha morrido há tempos e Augustinho, que era filho único, acabou levando uma ré danada na vida, ao dilapidar praticamente todo o patrimônio material, já que o moral e o ético, já tinham definhado primeiro que a grana.
Uma vez que sabia fazer quase nada, a não ser malhar o corpo nas melhores academias da cidade e jogar poker com seus amigos igualmente abonados, Augustinho viu-se, de repente, numa situação em que era preciso tomar uma providência, já que os trocados para tomar uísque estavam praticamente na guimba.
Vocês sabem: o dinheiro — o excesso de dinheiro — torna as pessoas bastante populares. Então Augustinho cismou em se candidatar a deputado federal pelo mesmo partido conservador do falecido pai. E não é que deu liga?
Conluiado, patrocinado por um grupo de empresários de cassinos camuflados subterrâneos, Augustinho acabou sendo um dos mais votados no último pleito. Morando num apartamento funcional em Brasília, gentilmente cedido pelo erário, Augustinho se sentia muito bem, mas muito bem mesmo. A sorte voltara a sorrir para ele, depois de um curtíssimo período de turbulências financeiras. Ao menos, durante o período de mandato, estava com a vida ganha. Se fizesse tudo direitinho, se rezasse obediente a cartilha do cartel da jogatina, estaria com o futuro garantido.
Mas Augustinho levou outra bordoada: o amor... Ah, o amor... Seu erro foi se afeiçoar pela Lulu — a Luciana Hustler, uma ex-miss, ex-modelo, ex-bê-bê-bê, excomungada lobista sedutora ao estilo “desmancha casamento” (vai ser gostosa assim lá no Congresso Nacional, meu chapa!) — que maquinava a serviço de outro segmento do crime organizado, desta feita, um grupo de carcamanos canarinhos que fraudava a Previdência Social, com a apoio de vereadores, deputados, prefeitos e do próprio belzebu.
Resumo da estória: a quadrilha foi desbaratada; a casa caiu; Augustinho foi pra cadeia num camburão; eu fui pra casa a pé declamando Drummond. Assim é a vida.
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sexta-feira, 27 de setembro de 2013
A lobista que me amava, por Carlos Willian Leite
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