Dorrit Harazim, O Globo
Ricardo Texeira, Lula, Joseph Blatter em 2007
Terça-feira, 30 de outubro de 2007. Na sede da Fifa em Zurique, o Brasil fazia a última de suas cinco apresentações para sediar a Copa do Mundo de 2014. Nem era preciso tanto esforço. Diante da desistência da Colômbia, cinco meses antes, e da dissolução da candidatura conjunta Argentina-Chile, sobrava o Brasil como candidato único no sistema de rodízio por continentes, hoje sepultado.
Ainda assim, a delegação que fora apoiar a nossa candidatura era de peso. Tinha à frente o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, além do presidente da CBF Ricardo Teixeira, 12 governadores estaduais, o ministro do Esporte Orlando Silva, o senador Marconi Perillo, representando o Congresso Nacional, e Dunga, o técnico da seleção canarinho.
Cada qual com sua respectiva comitiva, é claro. Além de dois “embaixadores” pinçados a dedo pelo entusiasmo à causa: o escritor Paulo Coelho e o atacante Romário.
A apresentação de Paulo Coelho, que saudara o presidente da Fifa Joseph Blatter com um cher ami, foi a mais aplaudida por fazer uma irreverente comparação entre a paixão brasileira por futebol e por sexo.
Ao final, por voto unânime dos 20 membros do Comitê Executivo, o Brasil foi confirmado. “O mundo terá a oportunidade de ver o que o povo brasileiro é capaz de fazer”, festejou Lula para uma nação inebriada.
(Seis anos depois o povo mostraria a Lula e ao mundo o que é capaz de fazer.)
Na ocasião, Blatter assegurara que o Brasil era um candidato de qualificação garantida e, mesmo não havendo outros países no páreo, teria sido vetado se não tivesse se comprometido a cumprir as exigências estipuladas pela Fifa. Em tese, até meados de 2012 ainda poderia ter sido trocado por algum país-sede alternativo, caso o andamento das medidas acordadas não seguisse o curso necessário.
Mas, de arena em arena e com transparência zero nas contas, a coisa andou. Mudaram os protagonistas, mas os investimentos canalizados para este Brasil emergente nunca faltaram.
Ainda duas semanas atrás, faltando 48 horas para a abertura da Copa das Confederações em Brasília, a presidente Dilma Rousseff inaugurou um moderníssimo centro de comando e monitoramento nacional de segurança.
O equipamento tem nome comprido, Sistema Integrado de Comando e Controle para Segurança de Grandes Eventos, e custo alto — R$ 1,1 bilhão. Apresentado como capaz de integrar todas as forças de segurança nas seis cidades-sede da Copa das Confederações, foi ativado simultaneamente em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.
“Agora podemos dizer que a segurança durante a Copa das Confederações está garantida”, afirmou a presidente durante a cerimônia.
“Teremos condições tecnológicas para, no espaço de quilômetros, saber a pessoa que está cometendo delitos, e ter tudo filmado”, complementou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, elencando a versatilidade do novo sistema.
No Rio de Janeiro, o telegênico Centro Integrado de Comando e Controle (CICC) fora estreado semanas antes pelo governador Sérgio Cabral, a um custo de R$ 104,5 milhões. Tecnologia, ali, também não falta, a começar pelo já famoso telão de cinco metros de altura, 17 de comprimento e seus 98 monitores de LED.
“Esse centro é um exemplo para o mundo, e a segurança pública ganha em qualidade. Terá papel central na articulação das seis cidades-sede na Copa das Confederações”, assegurou o ministro Cardozo.
Só que parafernália tecnológica, sozinha, não articula, e se houve algo que as cidades brasileiras não ganharam ao longo da última semana foi segurança pública. Ademais, nem o mais moderno dos sistemas é programável para também alertar governantes a prestar atenção a movimentos como o Passe Livre.
Nem a emitir boletins sobre o estado de calamidade dos serviços públicos da nação. Por terem falhado numa obrigação que é deles, os governantes agora estão perplexos.
Quanto aos milhões de brasileiros que permaneceram calados enquanto se construiu uma Copa sem prestação de contas transparentes, sem audiências públicas com apresentação de projetos, discussão de impasses ou debates de soluções, a hora de opinar começou. Na rua. Sem data para aquietar-se.
Até porque o próprio calendário dos Grandes Eventos lhes servirá de pauta — no mínimo até os Jogos Olímpicos do verão de 2016, no Rio.
Por ora, o movimento já conseguiu enxotar Joseph Blatter pelo menos por alguns dias. O presidente da Fifa, que estava no Brasil para a Copa das Confederações e só se desloca num séquito de automóveis de proporções pouco republicanas, viajou na noite de quarta-feira para participar da abertura do Mundial Sub-20 na Turquia.
Paradoxalmente, porém, a hipótese, mesmo remotíssima, de a Fifa ter de suspender a continuação do evento no Brasil por “força maior” (leia-se, falta de segurança) deixaria uma marca de choque múltiplo no país.
Com tudo isso em mente, cabe aqui uma homenagem a Belisario Betancur, 53º presidente da Colômbia. Em 1972 o país fora escolhido sede da Copa do Mundo de 1986. Com doze anos de antecedência, portanto.
Em 1982, ao ser empossado, Betancur não precisou de mais de dois meses no poder para concluir o óbvio: a Colômbia não tinha condições de sediar uma Copa. Comunicou sua decisão em pronunciamento brevíssimo à nação: “Como preservamos o bem público, como sabemos que o desperdício é imperdoável, anuncio a meus compatriotas que o Mundial de Futebol não se realizará na Colômbia, após consulta democrática sobre quais são as necessidades reais do país: não se cumpriu a regra de ouro segundo a qual a Copa deveria servir à Colômbia e não a Colômbia à multinacional da Copa.
Aqui temos outras coisas para fazer e não teríamos sequer tempo para atender às extravagâncias da Fifa e de seus sócios. García Márquez nos compensa totalmente pelo que perderemos como vitrine sem o mundial de futebol.”
Quatro dias antes, Gabriel García Márquez havia sido anunciado vencedor do Nobel de Literatura. O presidente da Fifa à época era o brasileiro João Havelange. A Copa de 1986 acabou sendo realizada no México.
Dorrit Harazim é jornalista.
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