Ante a provável baixa da tarifa de ônibus nas capitais que sediaram as maiores manifestações populares dos últimos tempos, a indagação aguça a curiosidade de todos: qual será o próximo foco?
O primeiro round da guerra que tem, de um lado, exércitos compostos por variados conjuntos da sociedade, e, de outro, guerreiros defensores do establishment, deve terminar com evidente vitória dos primeiros.
O atendimento da demanda por executivos estaduais e municipais (até o alcaide paulistano cedeu) será o jorro d’água para apagar faíscas que ameaçam multiplicar fogueiras acesas nas principais regiões do território.
Urge atentar para o sinal amarelo aceso no farol dos governantes e suas múltiplas significações: o som barulhento das ruas não mais carece de maestros de grandes orquestras, sejam políticos ou lideranças sindicais; não é preciso muito tempo para as massas afluírem às ruas; a tuba de ressonância desses tempos efervescentes é o conjunto das redes eletrônicas da internet.
Se a reivindicação concreta das turbas for acolhida, como governantes de algumas capitais e Estados já o fizeram (gerando o efeito dominó), permanecerá a dúvida sobre os próximos passos da ampla movimentação social, eis que as palavras de ordem tentam expressar a amálgama de carências que compõem o Produto Nacional Bruto da Insatisfação, agrupando, entre outras, os estrangulamentos do sistema de transportes, a precária estrutura de saúde, as deficiências nas frentes educacionais e a crescente insegurança pública ante a avalanche de atos de extrema violência nas grandes cidades.
E agora, galera, as batalhas continuarão? Haverá questões específicas a serem proclamadas? Os administradores públicos, por sua vez, ficarão entre a cruz e a caldeirinha: atenderão as demandas ou farão ouvidos de mercador.
A questão abre um leque de abordagens. A primeira diz respeito à natureza das reivindicações. O pleito da redução da tarifa de ônibus posicionou na linha de vanguarda a esfera estudantil.
Os jovens encontraram na vertente dos transportes uma causa próxima aos seus interesses, sem deixar de avocar outras demandas. Vale registrar a energia de um universo de quem se reclamava inércia, desinteresse, apatia.
Desde os “caras pintadas” da era Collor não se via tanta disposição, a demonstrar que os exércitos estudantis são os primeiros a usar a musculatura e a entrar no palco de guerra, caso tenham motivo para tanto.
A mobilização estudantil ganha expressão diante de uma paisagem urbana tradicionalmente ocupada por soldados comandados por Centrais Sindicais.
Nas últimas décadas, vale lembrar, infiltraram-se elas nas entranhas do Estado, em conluio que deixa transparecer preocupação com os cofres. (Basta anotar as grandes concentrações de massas a cargo das Centrais nas festas do 1º de maio, animadas por sorteios de casas e carros).
É saudável, portanto, enxergar grupamentos jovens voltando às passeatas, empunhando bandeiras e fazendo ecoar demandas e palavras de ordem. Ocorre que, para ser eficaz, a locução cívica dos estudantes carecerá, doravante, de clarificação de metas, sob pena de suas vozes se perderem na polifonia de uma Torre de Babel.
Não se quer dizer que tenham de esquecer o discurso que clama por mudanças em muitas frentes, como este que costurou o pano de fundo da reivindicação da tarifa zero para as passagens de ônibus.
Governantes e atores políticos de todas as instâncias precisam ser monitorados, avaliados, cobrados e, assim, perceber que há vigilantes cívicos fazendo ronda no entorno de palácios, sedes de governo, cúpulas congressuais, assembleias e câmaras.
Mas, para efeito de resultados imediatos, as manifestações de caráter massivo necessitam abrigar metas, de acordo com parâmetros de bom senso e capazes de abrir diálogo entre partes.
Nessa trilha e por conexão com a redução de tarifas, seria razoável que, nesse momento, os entes municipais e estaduais se debruçassem sobre os meios de mobilidade urbana, refazendo programas, reordenando cronogramas, com vistas à expansão dos sistemas e melhoria de qualidade dos serviços. Dessa forma, a movimentação adensará seu escopo e poderá obter mais vitórias.
O recado das ruas serve também de alerta para que gestores públicos passem a lupa sobre os serviços precários em todos os setores da vida cotidiana.
Afinal, aguda dissonância fere a sensibilidade tanto de plateias das cadeiras numeradas quanto de galeras das gerais: de um lado, a estética exuberante dos estádios de futebol, emoldurada por formas e traços futuristas, a denotar a absorção de avançados parâmetros tecnológicos; de outro, a acanhada e esburacada estrutura de serviços, cuja estética é pontilhada por corredores de hospitais locupletados de macas, filas quilométricas em postos de atendimento, superpopulação nos meios de transporte, vielas e becos apinhados de jovens drogados, chacinas seriadas nas periferias.
Para completar o cenário de contrastes, a falta de ônibus para acesso rápido aos majestosos estádios e a indignação por se cobrar de torcedores 8 reais por um cachorro quente. A imagem que se tem é a do reizinho que tenta esconder doenças nas habitações de seu reino com paredes folheadas de ouro.
Chama atenção o fato de que as manifestações se desenvolvem sob o empuxo de integrantes de grupamentos centrais: estudantes de curso superior (e seus pais), simpatizantes de partidos de esquerda, punks, ativistas em defesa de igualdade de gêneros e minorias, funcionários públicos, profissionais liberais etc.
Os exércitos periféricos não formam os maiores volumes dos contingentes. Sabendo-se que as correntes centrais influenciam as margens (a pedra jogada no centro faz marolas que chegam à beira do lago), pode-se imaginar desdobramento perigoso caso bolsões miseráveis sejam afetados em sua parte mais sensível, o bolso. Nesse caso (Deus nos livre dessa ameaça), a fome se juntaria com a vontade de comer.
Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato
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