quinta-feira, 16 de maio de 2013

A mãe do Freud - por Paulo Blank


Faz muito tempo que os psicanalistas deveriam ter construído um monumento homenageando Amália Malka Freud e, através dela, todas as mães que vêm dando sustento a quem vive de ouvir os outros falarem das próprias genitoras. No entanto, até onde sabemos Salomão Sigismund Freud nunca deitou num divã para exercitar o seu direito, nato, de se queixar daquela mulher plantada atrás da sua vontade obstinada. Meu Zig de ouro, era assim que a mãe chamava o filhinho concordando com a parteira que, ao vê-lo pela primeira, previu que o recém-nascido seria um grande homem.
Martin, filho de Zig Freud, conta que a avó Amália nasceu na Galitzia e que os judeus daquelas bandas do império austro-húngaro eram grosseiros e suas mulheres não eram, exatamente, “damas”. Emotivos, explosivos, considerados bárbaros indomáveis aos olhos das pessoas mais civilizadas, ou seja, dos judeus vienenses educados segundo os padrões refinados da capital do império. Mas, ressalta Martin cheio de orgulho, foram homens da mesma origem de Amália, habitantes do leste europeu, que se sublevaram nas ruas de Varsóvia contra o poder do exército alemão, produzindo a única revolta urbana na segunda guerra mundial. Um misto de espanto e admiração perpassa o testemunho de um neto fascinado pela avó.
Dolfi, a filha escalada para cuidar da mãe, dedicou-se a Amália Malka e, segundo o neto, cumpriu à risca o seu destino. Certo dia Dolfi levou-a a uma chapelaria. Experimenta daqui e dali, a filha lhe oferece um chapéu e leva uma bronca: “Este eu não levo, me envelhece muito”. Nada mal para uma mulher com mais de noventa anos que seguia aflita quando Zig demorava a chegar às festas familiares. Nervosa, abria a porta a toda hora. Apesar da casa cheia, o que lhe importava era a ausência do pequeno Zig que, àquela altura, era um médico conhecido e cheio de filhos. Segundo Martin, o melhor era fingir que não se notava o ir e vir da avó, pois qualquer comentário desencadeava um ataque de fúria. 
Ao que parece, a Sra. Freud soube despertar adjetivos em toda a família. Foi descrita pela filha Julie como sedutora, egoísta, caprichosa, enérgica, competente e egocêntrica, mas, ao mesmo tempo, e não por acaso, capaz de rir de si mesma e se fazer de ridícula quando falhava em alguma coisa. Esforçando-se para realizar a previsão da parteira, dedicou-se a preparar o rebento para adentrar em um mundo tão antissemita quanto culto. Morando na parte pobre de Viena, ela sabia que só com muito estudo a filharada sairia daquelas condições. Era Amália quem ensinava ao pequeno Salomão Sigismund Freud o mistério das letras, da ortografia e da aritmética. Fazer de Zig um menino de ouro implicou em transformar este objetivo numa finalidade familiar.
Conta a filha Julie que, num belo dia, as meninas ganharam um piano comprado pela mãe, sabe-se lá com que esforço de economizar do que não tinha. Meninas ao piano, menino aos livros, todos felizes e em seus devidos futuros. Mas, aí, a coisa complicou. As valsinhas vienenses incomodavam os estudos do garoto, que, irritado, ameaçou abandonar o lar. A mãe, contou Julie mais tarde, deu um sumiço no piano que desapareceu sem deixar vestígios, acalmando o filho voltado para realizar o sonho de dona Amália. Uma mulher de verdade. 
Não sem razão, diria Freud, que perdeu a sua Amália quando ela já tinha noventa e cinco anos, que a morte de uma mãe é um acontecimento incomparável a qualquer outro e capaz de despertar emoções difíceis de conter. Vinda de um homem dedicado a decifrar as nossas paixões, esta frase enviada a um amigo tem a força de uma humilde confissão acerca da complexidade e da delicadeza da experiência humana.

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