Gaudêncio Torquato
Até quando a mistificação resistirá ao ciclo da transparência que a tecnologia inaugura em muitas frentes do cotidiano? Episódios da esfera criminal têm dado vazão à tese de que o caminho da verdade ganha amplitude na modernidade.
O goleiro Bruno acabou admitindo ter participado do episódio que culminou com a morte de Eliza Samudio. Noutro caso, vestígios de alga descobertos no sapato do ex-policial Mizael Bispo foram usados para comprovar que o indiciado havia estado na represa onde fora encontrada sua ex-namorada Mércia Nakashima. Um gol da tecnologia.
Dedos de silicone com impressão digital de médicos e enfermeiros, usados para fraudar o ponto eletrônico de um hospital público em São Paulo, foram flagrados pela polícia. Neste caso, o tiro saiu pela culatra.
Chamou a atenção nesses episódios o emprego da tecnologia, de um lado, como ferramenta para descobrir a verdade e, de outro, para encobri-la. A alga e o silicone se apresentaram como anverso e reverso da tecnologia que começa a balizar costumes e práticas. Dos eventos criminais mencionados, se pinça a hipótese de que o uso de ferramentas tecnológicas tanto pode contribuir para iluminar o altar da Justiça como servir de escudo a criminosos.
Por que tem aumentado a criminalidade, quando se sabe que a lupa é hoje mais calibrada? A paisagem, mesmo exibindo buracos nas frentes da saúde, da educação e da segurança, não chegou a um nível capaz de produzir rasgos de monta no tecido social. Se nos fixarmos no hilário caso dos dedos de silicone, poderemos enxergar outra possibilidade: o ilícito parece ter ligação com o baú cultural, que guarda traços do caráter nacional, como o jeitinho brasileiro. Manipulando a química do silicone, pagando um pedágio ao responsável pelo sistema e passando os dedinhos no aparelho, médicos que deviam dar cinco plantões por mês acabavam trabalhando só em um.
JEITINHO BRASILEIRO
O jeitinho é uma faceta do caráter brasileiro, usado como chave para abrir o cadeado da burocracia. Alguns imaginam que o cobertor legalista é capaz de cobrir nossa complexa e mestiça formação cultural. Ademais, como lembra Roberto DaMatta, o “jeitinho se confunde com corrupção e é transgressão, porque ele desiguala o que deveria ser obrigatoriamente tratado com igualdade”.
De tão enraizado, o jeitinho acaba colaborando para a formação do Estado de anomia, um território dominado pela desordem. A desmoralização escancara-se à vista de todos.
O amortecimento social chega a ponto de a barbárie se espalhar por ambientes que, por natureza, deveriam ser exemplos de grandes cuidados. Um hospital, por exemplo. De seus profissionais, se espera zelo pela vida. Daí a perplexidade ante a monstruosidade que teria sido perpetrada num hospital evangélico de Curitiba, onde uma médica é acusada de ter mandado desligar aparelhos de pacientes.
Baixem-se as cortinas, com o barão de Montesquieu espiando a cena e proclamando: “Parece-me que não há povo que não tenha sua crueldade particular”. No nosso caso, com um jeitinho providencial. (transcrito do jornal O Tempo)
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