CARLOS VIEIRA
“O amante, o lunático e o poeta/ São de imaginação somente feitos./ Um vê mais diabos do que cabe o inferno,/ Assim é o louco e também o amante./ Vê a bela Helena num semblante egípcio./ O olho do poeta, delirante vaga,/ Passa da terra ao céu, do céu à terra./ E enquanto dá contorno à fantasia/ A coisa até então desconhecida/ A pena do poeta lhe dá vida/ E ao que era vácuo um nome dá/ e um lugar fixa” (William Shakespeare, A Midsummer’s Night Dream, v.I. Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti).
Há anos que estou convencido de que a Literatura é uma ferramenta indispensável às pesquisas psicanalíticas e a aprendizagem do ofício para se ser Analista. Impossível se pensar num psicanalista que não tenha como recurso interno, capacidade estético-artística. A observação do mundo psíquico de uma pessoa requer alguém que tenha, treine e discipline o olhar para aquilo que se esconde além da consciência. Foi assim que Freud denominou sua psicologia como – Metapsicologia – um olhar que transcende a impressão sensorial e vai apreender o “sem nome”, o “não dito”, enfim tudo aquilo que repousa no Inconsciente e no Consciente não pensado, urgindo ser traduzido em palavras.
Ainda citando o belo livro de Geraldo Holanda Cavalcanti – A Herança de Apolo – Poesia Poeta Poema – Ed. Civilização Brasileira, 2012 – “O poeta português José Gomes Ferreira também vê no escuro o que os outros homens não veem. Poeta o que é?/Um homem que leva/ o facho da treva/ no fundo da mina/ - mas apenas vê/ o que não ilumina”... Escreve Geraldo Holanda: “Seria o poeta, assim, detentor de antenas especiais, dádiva ou não divina, mas, de qualquer forma, dom que o separa dos demais mortais e sobre eles o eleva, ao permitir atravessar a pele dos objetos ou dos eventos e vislumbrar-lhes as entranhas ou, ainda, o que, por trás de tais objetos ou fatos, está acontecendo ou por acontecer.”
A formação de uma psicanalista vai exigir que o mesmo tenha e aprenda os recursos da poética. Wilfred Bion, analista indiano com formação na Inglaterra, desenvolveu um método de observação da realidade psíquica que abrange três vértices: o científico-filosófico; o estético-artístico e o místico-religioso. Freud afirmava que via nas narrativas dos romances aquilo que escutava em sua sala de análise.
Outro dia, lendo e relendo um poema de Affonso Romano de Sant’Anna, poeta, ensaísta, cronista, jornalista, e mais um dos grandes mineiros da Literatura Brasileira que migraram para a Cidade Maravilhosa, como Drummond, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e tantos outros de não menos importância – Ulisses, O Retorno – contido em seu livro “Vestígios” (2005), me dei conta do intróito que faço nesse escrito de hoje sobre a importância da apreensão da realidade psíquica pelos poetas passeando de mãos dadas com os analistas.
A experiência de uma análise é uma ousadia mútua, de duas pessoas corajosas, no sentido de adentrar no interior da mente e experimentar medo, angústia, temores, alegrias e satisfações, na vivência em adquirir conhecimento psíquico e, quem sabe, empreender mudanças em suas vidas. – é o que plágio de Glauber Rocha – “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Freud deixou esse legado: a mente traz dentro de si “impulsos de vida e impulsos de morte”. Podemos pensar num modelo simpático: Caim e Abel não eram duas pessoas, e sim pares de opostos num só Ser. Todos nós temos dentro aspectos de Caim e de Abel. Naquilo que o poema de Affonso me tocou, diz respeito à angústia da vivência do Tempo, e do prazer e dor que se sofre quando se vive uma mudança psíquica. Quando se experimenta uma mudança, quebra-se um modo de ser anterior; instala-se um tempo de desorganização necessária, e vai aparecendo uma nova forma de ser e funcionar psiquicamente – essa é a função primordial de uma análise.
Não há mais possibilidade de se voltar ao antigo. Já não se pode mais andar com “as três pernas porque a terceira não ‘mais essencial’” que Clarice Lispector escreveu na “Paixão Segundo G.H.” Só com duas pernas teremos que fazer nossa viagem até a morte ainda que tenhamos a ilusão de existir uma terceira.
Melhor deixar, caro leitor, o Poeta falar o tema que inspirou essa Coluna de hoje:
Ulisses, O Retorno
“Como voltar/ depois de Itaca/ das sereias/ dos cíclopes/ de tanto assombro/ de tanto sangue na espada?
Como voltar/ se aquele que partiu/ partiu-se/ e voltará os fragmentos do excesso?
Não há retorno/ Há outra viagem/ diariamente urdida/ dentro da viagem/ antiga.
Embora o caminho/ da volta/ seja percorrido/ ninguém retorna/ apenas volta a viajar/ no espaço anterior/ estranhamente familiar.
Como se o regresso/ fosse acréscimo/ e o viajante descobrisse/ que é atrás/ que está a fonte/ e na alvorada/ o horizonte/ não há retorno./ Há o contorno/ do próprio eixo/ o tempestuoso/ périplo do ego/ um diálogo de ecos/ como quem/ tenta encaixar/ diferentes rostos/ no mesmo espelho.
Por isto, o retorno/ inelutável/ é perigoso/ exige mais perícia/ que na partida/ mais destreza/ que nos conflitos/ pois o risco/ é naufragar/ exatamente/ quando chegar ao porto.”
Como voltar/ se aquele que partiu/ partiu-se/ e voltará os fragmentos do excesso?
Não há retorno/ Há outra viagem/ diariamente urdida/ dentro da viagem/ antiga.
Embora o caminho/ da volta/ seja percorrido/ ninguém retorna/ apenas volta a viajar/ no espaço anterior/ estranhamente familiar.
Como se o regresso/ fosse acréscimo/ e o viajante descobrisse/ que é atrás/ que está a fonte/ e na alvorada/ o horizonte/ não há retorno./ Há o contorno/ do próprio eixo/ o tempestuoso/ périplo do ego/ um diálogo de ecos/ como quem/ tenta encaixar/ diferentes rostos/ no mesmo espelho.
Por isto, o retorno/ inelutável/ é perigoso/ exige mais perícia/ que na partida/ mais destreza/ que nos conflitos/ pois o risco/ é naufragar/ exatamente/ quando chegar ao porto.”
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasilia e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.
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