quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Metamorfoses da infâmia



O filósofo Roberto Romano. Foto: Unicamp (via: CONIB)
*Roberto Romano

Tempos atrás, na política internacional surgiu o apelido virulento de "Rogue State" para indicar os países que apoiam ou alimentam o terrorismo, o narcotráfico, a corrupção sistêmica. A fórmula foi ampliada por Jacques Derrida, que a traduziu como "État voyou". O termo francês voyou significa "pessoa de péssimo costume, bandido", ou "crápula". Derrida, para explicar o conceito, usa o seu oposto, a noção de respeito aplicada ao trato pessoal ou coletivo, nacional ou cosmopolita. Com semelhante divisão, ele estuda as noções e práticas de soberania legítima que prenunciam o advento de uma democracia universal.

Estados ditatoriais baseiam-se, em grande maioria, no reinado da crápula. Não apenas os líderes agem contra a lei naquelas quadrilhas erigidas em governos (cito Santo Agostinho, prudente conhecedor do gênero humano). As massas, em tais regimes, são convocadas para destruir os últimos signos de direito individual ou público. A legislação totalitária brota das sarjetas e a elas retorna, inunda tudo e todos com lama, sangue, lágrimas dos vencidos. Assim foi o período ditatorial que dominou o século 20, na esquerda ou na direita. O mesmo ocorreu nas formas civis e militares do autoritarismo que desgraçou países inteiros por longos anos, inclusive na América do Sul.

Marca da ideologia totalitária, o antissemitismo surgiu na Alemanha nazista, na Itália fascista, na URSS de Stalin e em países que o seguiam. Sobre o banditismo nazista acaba de ser publicado no Brasil o ensaio de Saul Friedländer A Alemanha nazista e os Judeus - os Anos da Perseguição, 1933-1939 (Ed. Perspectiva). Ali é mostrado o equívoco dos bem-intencionados e a má-fé dos que aderiram aos métodos hitleristas. Quanto ao antissemitismo de esquerda, a literatura é enorme, sobretudo após o fim da URSS, com a abertura de arquivos antes lacrados. Dentre os escritos que trazem documentos e análises rigorosas, menciono o de Arkadi Vaksberg, Stalin e os Judeus, o Antissemitismo Russo: uma Continuidade do Czarismo ao Comunismo (Paris, Laffont, 2003). Já a repulsa dos comunistas à palavra cosmopolitismo vem de duas origens: a redução dos alvos internacionalistas dos soviéticos ao "socialismo em um só país" e a calúnia segundo a qual os judeus não se prendem a nenhuma pátria porque desejam (segundo os forjados, para a polícia secreta de Nicolau II, Protocolos dos Sábios de Sião) dominar o mundo inteiro pelas finanças, pelas armas e pelo comércio. O antissemitismo soviético é metamorfose do seu congênere czarista.

Stalin apoiou a criação do Estado de Israel, chegou a autorizar que milhares de militares judeus soviéticos ajudassem nas lutas contra os países árabes, em maio de 1948. A URSS queria controlar e dispor do Oriente Médio contra ingleses e norte-americanos (cf. Rucker, Laurent, Stalin, Israel e os Judeus, PUF, 2001). Ao perceber que Israel não serviria aos seus alvos, o Kremlin abandonou o apoio. No mesmo tempo foi cunhada a palavra de ordem sobre o "antissionismo". Em 1949 começou na URSS a campanha contra os judeus, na qual se notabilizaram os insultos dirigidos aos cidadãos israelenses ("nacionalistas sionistas"). Unidos aos seus parentes que ainda moravam na Rússia (os "cosmopolitas apátridas"), os judeus planejariam a queda do socialismo no mundo. Naquele instante foi dissolvido na URSS, por ordem de Stalin, o Comitê Judeu Antifascista. A campanha antijudaica espraiou-se na base da sociedade russa e no Kremlin. Vem daí o chamado "complô das blusas brancas". Os próprios médicos de Stalin, de origem judaica, planejariam sua morte. Em 1952 diz o próprio Stalin: "Todo sionista é agente do serviço de inteligência americano. Os nacionalistas judeus pensam que sua nação foi salva pelos Estados Unidos, onde eles podem tornar-se ricos, burgueses. Eles pensam ter uma dívida para com os americanos. Entre meus médicos muitos são sionistas". Sionismo, em sentido pejorativo e ideológico, tem sua origem nos porões do Agitprop e nos embates da polícia política de um regime bandido. Mas assistimos hoje a outra metamorfose da propaganda antissemita, sob a máscara do antissionismo.

Não é novo o discurso pronunciado na ONU pelo vice-presidente do Irã, Reza Rahimi, no qual se adianta com irresponsabilidade fanática: "A proliferação das drogas no mundo emana do Talmude". O mesmo Talmude, assim fala a calúnia delirante, "ensina que é lícito enriquecer por meios legais ou ilegais, o que dá direito aos judeus de destruir a humanidade". A fala do líder iraniano foi nutrida pelas ideologias assassinas, o império da sarjeta na Europa.

Recordemos que também o Brasil ditatorial se alimentou de antissemitismo (basta recordar os livros de Maria Luiza Tucci Carneiro sobre a era Vargas). Lembremos que setores católicos foram antissemitas: "Já se havia dito que o êxodo dos judeus em massa, da Alemanha, obedecia a um plano político organizado contra o Partido de Hitler. (...) Malogrados, porém, esses propósitos, graças ao patriotismo do povo alemão, os judeus vão desistindo da sua conjura, e retornam às antigas atividades que exerciam, submissos às leis do país" (A Ordem, 47, 1934, cf. Cândido Moreira Rodrigues, A Ordem - uma revista de intelectuais católicos, 2005). A Igreja hoje se afasta do antissemitismo na maior parte de seus fiéis ou hierarcas.

O mesmo não ocorreu em agremiações de esquerda, que ainda seguem palavras de ordem stalinistas em terras brasileiras. Não surpreende que ideólogos comunistas apoiem o extermínio dos judeus e do Estado de Israel. Espanta que políticos e líderes, judeus e brasileiros, supostos democratas, convivam fraternalmente numa "base aliada" de governo que tolera discursos e práticas nefandos, como a do vice-presidente do Irã. De fato, não podemos aquilatar até onde vai a metamorfose da infâmia.

*Roberto Romano é professor de ética e filosofia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

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