CRÔNICA
Cartas de Buenos Aires: Fileteado portenho
Antigo, popular e marginal como o tango, a técnica pictórica conhecida como fileteado portenho é uma das melhores traduções de Buenos Aires. Chegou com os imigrantes, foi proibido por razões de segurança, sobreviveu de teimosa e hoje vive uma fase de redescoberta.
Grosso modo, pode-se dizer que o fileteado é um parente sofisticado das decorações das carrocerias dos caminhões brasileiros. Também começou nos carros e com frases cunhadas na sabedoria popular.
Infelizmente há poucos registros oficiais do início desse trabalho. Entre seus pioneiros estão três italianos - Cecilio Pascarella, Vicente Brunetti e Salvador Venturo – que começaram a pintar com cores as laterais das carroças que eram usadas para entregar produtos, no final do século XIX (e que até então eram cinza) e separá-las com uma linha fina de cor mais intensa ou constante, o que chamamos hoje de filete. Depois, passaram para os carros e ônibus.
A partir daí foi-se criando o repertório específico de desenhos que caracterizam o fileteado: flores, folhas, pássaros, fitas com o azul e branco da bandeira Argentina, bolas, dragões e ainda linhas retas e curvas de diferentes espessuras que vão se mesclando com cenas do campo e personagens populares, como a Virgem de Luján e Carlos Gardel.
Na década de 1970, o filete foi proibido por lei porque podia distrair os motoristas. E quase desapareceu. Mas foi justamente esta proibição que levou os filetes para outros suportes.
Diferente do que aconteceu no Brasil, na Argentina a técnica ganhou novos usos. Saiu dos veículos para os cavaletes dos ateliês de arte. Hoje se vê o fileteado por todo o lado, inclusive em roupas e, ultimamente, até na pele. A tatuagem com filete está na super na moda.
O Iº Encontro de Fileteadores portenhos, realizado neste final de semana, no bairro de Mataderos, reuniu mais de 200 profissionais e, mesmo ignorado pela imprensa local, mostra que há um movimento para que esta arte não desapareça.
Participaram do evento grandes maestros, com mais de 50 anos de filete, e também jovens de 18 anos, que começam a fazer seus primeiros desenhos. Surpresa: muitos deles saídos da Escola de Belas Artes, que fizeram uma opção por uma técnica decorativa tradicionalmente popular.
Entre os artistas mais reconhecidos nesta técnica estão o polonês León Untroib (morto em 1994). Da geração atual, Martiniano Arce e, mais recentemente, Alfredo Genovesi, que está fazendo uma revolução no uso comercial do filete, trabalhando para grandes marcas, como Nike e Coca-Cola.
A tradição gráfica do filete sobrevive e renasce, como fez o tango. Agora falta somente que se revogue o decreto que a proibiu, para que volte a adornar com humor e melancolia a cidade que a inspira.
Gisele Teixeira é jornalista. Trabalhou em Porto Alegre, Recife e Brasília. Recentemente, mudou-se de mala, cuia e coração para Buenos Aires, de onde mantém o blog Aquí me quedo, com impressões e descobrimentos sobre a capital portenha
Nenhum comentário:
Postar um comentário