A sentença proferida pela Justiça, condenando Mayara Petruso por ter manifestado repulsa aos nordestinos, por terem votado em Lula, exige uma meditação. A simplória Mayara nem percebeu que quem elegeu Lula foi a massa dos votos paulista, inumeráveis. Ela é paulista e não é fácil ser nordestino em São Paulo, menos hoje que no passado, penso eu. Eu não votei em Lula e o repudio não por ser nordestino, mas por ser revolucionário populista, pondo em perigo as próprias instituições democráticas, a economia de mercado e a higiene política do Brasil, coisas sobre as quais a Mayara nem pensou. Nem por instinto. Apenas não gosta de nordestinos.
Preconceito antigo. Que é ser nordestino? Nada. E tudo. Não é raça. Nem religião. É tudo porque há um traço característico do nordestino migrante: a miscigenação. Como a cantou Ary Barroso na linda Aquarela do Brasil. Música incompleta, porque a nossa miscigenação é também mameluca e cafuza. Mayara é portadora de preconceito antigo contra os “brasileiros”, que assim eram chamados os mestiços no século XIX, em oposição aos brancos colonizadores, que se consideravam europeus. E atribuíam aos mestiços as más qualidades de sua sombra psíquica. Mayara deu o azar de viver em tempos outros e de escrever no Twitter, gerando contra si prova inconteste do seu racismo.
“Ô abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado”
Tira a mãe preta do cerrado”
Tira a mãe índia do esquecimento também, poderíamos dizer. O que é certo. O sangue do bugre corre nas veias de cada um de nós.
O racismo contra os mestiços está presente em toda a parte, inclusive em nossa literatura mais vistosa. Sérgio Buarque de Holanda, ao falar do nosso homem cordial, outra coisa não fez que não gravar, em letras góticas, essa visão negativa do mestiço. Euclides da Cunha, sob o espanto da resistência em Canudos, também o fez. Coube a Guimarães Rosa escrever em letras garrafais a língua dos mestiços, agora elevada à condição universal por sua arte literária. Mas nem ele, em seus primeiros exercícios literários – no já monumental Sagarana – escapou de chapar esse mestiço com as cores fortes do preconceito. Seu Salatiel e sua Jiní, deliciosos personagens moldados desde as páginas do Raízes do Brasil e do Casa Grande e Senzala, são expressão dessa visão negativa do mestiço.
Guimarães Rosa redimiu-se pela eternidade ao criar o Riobaldo, esse herói universal com cara de sertanejo, mestiço, matuto. Heroico.
Gilberto Freyre terá sido o primeiro a ir além de todos e dizer que o mestiço, além de dar cor à nacionalidade, podia ser visto como um ser humano igual aos demais. Se o mestiço singulariza nossa gente, não é mais e nem menos que qualquer outra pessoa, portador de qualidades e defeitos. Ele escreveu quando o Brasil não era nada e todo nosso atraso era tido como obra da mestiçagem, um grande mérito do pernambucano. Depois de ocupar o lugar de uma das dez maiores economias do planeta, o Brasil materializa seu destino manifesto de grande país mestiço. O mesmo matuto construiu a prosperidade e superou o atraso.
O racismo é algo atávico porque se torna uma explicação simples e identifica a suposta causa imediata de todas as mazelas. É a ferramenta dos estúpidos.
De tanto tempo em São Paulo por vezes eu sou confundido com um da terra. E sou o eventual confidente de preconceitos, ditos a boca pequena, de paulista para paulista. Aí o susto: faço pior que o juiz da sentença de Mayara, sou o juiz e o vingador. Alguns casos hilários, outros de franco pugilato. Divirto-me, mas sou implacável. Ser conivente com o preconceito contra os nordestinos é ser conivente com o preconceito contra os brasileiros enquanto tal.
“Brasil, meu Brasil Brasileiro
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
Ô Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingar
Ô Brasil do meu amor
Terra de Nosso Senhor
Meu mulato inzoneiro
Vou cantar-te nos meus versos
Ô Brasil, samba que dá
Bamboleio, que faz gingar
Ô Brasil do meu amor
Terra de Nosso Senhor
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