Ricardo Setti - via Veja
O assalto e tomada de posse, na marra, do governo da presidente Cristina Kirchner à empresa petrolífera argentina YPF, subsidiária da multinacional espanhola Repsol, é isto mesmo: um assalto.
Deixando à margem as gravíssimas consequências que o gesto terá para o fluxo de investimentos estrangeiros à Argentina, para as relações com um país que há séculos mantém boas relações com Buenos Aires – a Espanha – e com a própria União Europeia, o governo demagogo, populista e autoritário de Cristina preferiu o caminho da ilegalidade. O ministro da Indústria, José Manuel Soria, considerou, antes da virtual ocupação da empresa, que a atitude do governo argentino até então constituía um “ato de hostilidade” a Madri.
Poderá custar caro em todos os sentidos, inclusive no financeiro. A Espanha tem com a Argentina há vários anos um Acordo de Proteção Recíproca de Investimentos. Um recurso da Repsol e do governo espanhol ao Centro Internacional para a Arbitragem sobre Investimentos, organismo multilateral ligado ao Banco Mundial, pode custar aos cofres de Cristina pelo menos 4 bilhões de euros.
Cristina agiu com a Repsol com a mesma truculência com que lança mão dos baderneiros piqueteiros para encurralar governantes locais dissidentes, com que utiliza a tropa de choque de jovens conhecida como “Cámpora” para hostilizar e pressionar parlamentares da oposição e com que tem usado todos os meios a seu alcance para calar a imprensa crítica. São métodos que se coadunam como os de mentir descaradamente sobre a real taxa da inflação, se preciso for enxertando os órgãos oficiais de militantes peronistas que recebem ordens da Casa Rosada e destruíram a credibilidade construída durante décadas por essas instituições.
(A revista britânica The Economistinformou há algumas semanas a seus leitores que não mais publicaria qualquer estatística econômica proveniente do governo argentino).
No caso da YPF, a presidente apertou um botão em março e, como em cascata, sete províncias governadas por aliados seus começaram a cancelar dezenas das 150 licenças para exploração de petróleo em seus territórios pela empresa, sempre sob a mesma alegação: a suposta insuficiência de investimentos.
A YPF, estatal privatizada em 1999, fez tudo o que estava ao alcance de uma empresa privada para obter um acordo com o governo argentino – e as propostas foram invariavelmente recusadas. Entre outras, as seguintes:
* o compromisso escrito de inversões de centenas de bilhões de euros;
* conceder mais poder ao governo central e às províncias na empresa por meio da criança de um pool de províncias que passaria a deter 10% do capital (hoje, 57,43% YPF pertencem à Repsol, 25,46% ao grupo argentino Petersen, 17,09% são capital flutuante comercializado em Bolsa e apenas 0,02% do governo argentino);
* entrada de um sócio financeiro e industrial que fosse “abençoado” pela presidente – caso em que a estatal chinesa Cnoc e seu sócio argentino, a família Bulgheroni, próxima a Kirchner, ficariam com uma boa fatia da empresa.
De nada adiantou também mostrar números expressivos – como os da província de Mendoza, uma das últimas a banir a Respsol: ali, as planilhas da multinacional mostram que os investimentos vêm crescendo ininterruptamente desde 2007, que passaram de 600 milhões de dólares no ano passado e, depois da extensões de concessões acordadas com o próprio governo local, alcançariam mais 3,5 bilhões nos próximos anos.
De nada adiantou, e nem adiantaria – como foi efêmero o efeito do longo telefonema trocado dias atrás entre o rei Juan Carlos e a presidente, que acalmou o ímpeto demagógico do governo durante apenas alguns dias.
A Argentina, país riquíssimo em diferentes formas de produção de eletricidade, vive uma brutal crise energética, e a presidente, como costuma agir, encontrou um bode expiatório: desta vez, é a Repsol.
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