Integrante do Ministério Público de Goiás desde 1983 e secretário de Segurança entre 1999 e 2002, o promotor licenciado Demóstenes Torres deveria saber que quem prende não pode conviver fraternalmente com candidatos à cadeia. Reeleito em 2010 por brasileiros entusiasmados com a declarada por Demóstenes à corrupção institucionalizada e impune, o senador do DEM deveria saber que a coerência proíbe a quem critica em público parcerias promíscuas cultivar, na vida privada, ligações igualmente perigosas. Deveria saber, mas não sabe. Ou finge que não, o que dá na mesma.
Se soubesse que um defensor da lei não pode ser amigo de um caso de polícia, como ressalta o comentário de 1 minuto para o site de VEJA, o senador excluiria do círculo restrito aos muito íntimos o delinquente de estimação Carlos Augusto Ramos, vulgo Carlinhos Cachoeira, condenado na semana passada a dez anos e meio de prisão. Segundo reportagem de VEJA, escutas telefônicas autorizadas pela Justiça registraram 288 diálogos travados em 2010 entre o parlamentar oposicionista e o oficial graduado da máfia dos caça-niqueis. Uma conversa por dia.
“Carlinhos é meu amigo”, confirmou Demóstenes. “É uma figura conhecida em Goiás, simpática com todo mundo, é um empresário daqui”. A descrição pode ser estendida aos bicheiros ─ ou “empresários carnavalescos” ─ do Rio de Janeiro. “Carlinhos não era conhecido entre nós por explorar jogos de azar”, garantiu. “Para os amigos, dizia que não mexia com nada ilegal”. É o que ele diz também aos parentes e à polícia. Mas só índios das tribos isolados ignoram que, desde o século passado, o simpático meliante atropela o Código Penal amparado nas relações especiais com políticos influentes.
Na terça-feira, ao discursar da tribuna, Demóstenes repetiu que não cometeu nenhum crime nem foi alvejado por acusações formais. Foi homenageado por 44 apartes solidários. Representantes de todas as bancadas ─ de Pedro Simon e Jarbas Vasconcelos a Romero Jucá e Lobão Filho, de Aécio Neves e Aloysio Nunes Ferreira a Alfredo Nascimento e Eduardo Suplicy ─ louvaram as virtudes do colega injustiçado. Marta Suplicy, por exemplo, presenteou-o com o título de “maior e mais brilhante opositor na Casa” e uma frase em dilmês primitivo.
“A atitude de ter vindo se colocar em plenário levou toda a Casa a ter uma postura uníssona, de situação e oposição, o que é muito raro”, disse a vice-presidente do Senado. “Deve ter sido agradável perceber o respeito que seus companheiros têm e a sua presunção de inocência, o gesto que todos lhe fizeram”. E muitos balançaram afirmativamente a cabeça quando Ana Amélia declamou a interrogação tremenda: “A quem interessa calar a voz mais dura, mais contundente, às vezes até ferina, às denúncias das mazelas da corrupção em nosso país? A quem interessa?”.
Interessa à maioria da turma que lotava o plenário, berraria um senador sincero se tal raridade ainda existisse. Os 44 apartes poderiam ser fundidos numa frase: “Bem-vindo ao clube, Demóstenes Torres”. O que pareceu uma sessão de desagravo ao colega em situação adversa foi uma demonstração de unidade dos presididos por José Sarney. O aplauso unânime da Casa do Espanto sugere que o aplaudido fez algo de errado. Demóstenes Torres não ficou melhor no retrato.
Ele faz de conta que nunca viu o vídeo, divulgado em 2004, em que Carlinhos Cachoeira contracena com Waldomiro Diniz, o parceiro bandalho de José Dirceu. Mas não escapará de assistir à mais recente produção de Carlinhos Cachoeira, que estreou nesta sexta-feira. Agora, o mafioso sem cura trama pilantragens com o deputado federal Rubens Otoni, do PT goiano. “Todo mundo, de todos os partidos, fala com Carlinhos e com os demais empresários”, disse Demóstenes na terça-feira. É verdade, sublinha o vídeo.
É improvável que o senador se anime a tratar do caso. Se resolver provar que já não anda em má companhia, ouvirá em sucessivos apartes o mesmo lembrete: não se abandona um velho amigo em apuros. A Casa do Espanto festejou o discurso de Demóstenes para inibir os próximos. Pela primeira vez, o senador deverá calar-se diante de um escândalo. O primeiro silêncio será a anunciação da mudez definitiva.
Fonte: Augusto Nunes
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