O
convívio intenso e longo com o poder tem um poderoso efeito narcotizante.
Transforma seres mortais, pessoas simples e humildes, gente com histórias
iguais a de seus semelhantes, em pequenos “deuses” de um Olimpo cada vez mais
povoado.
A que se deve esse tipo de distorção? À
armadilha do falso retrato, da autocontemplação, que prende os homens públicos
na moldura de Narciso, aquele que foi condenado pelos deuses a se apaixonar
pela própria imagem.
Como conta a lenda, ele tomou-se de amores
pela imagem quando se contemplava nas águas transparentes de uma fonte.
Obcecado pelo reflexo, Narciso não mais se afastava da fonte, definhando ali
até a morte.
Hoje, vive-se a plena era do
Estado-Midiático. Como lembra Roger-Gérard Schwartzenberg, no clássico O
Estado-Espetáculo, os profissionais do espetáculo e da política compartilham
frequentemente as mesmas atitudes e os mesmos vezos, como se, diante de
problemas de representação comparáveis, “eles reagissem recorrendo a
procedimentos análogos.”
O Brasil está recheado de narcisistas,
pessoas fascinadas pelo seu próprio brilho, um brilho ilusório, porque muitas
perderam o poder, mas não o orgulho. Que tipo de mal os narcisistas cometem
contra si mesmos e contra a sociedade?
O maior dos males é o da inação, o da
inércia, o da perda do sentido de realidade. Presos no simulacro do poder,
exibem um prestígio falso, que frequentemente conduz ao ócio. Aliás,
praestigium, do latim, significa nada mais nada menos que artifício, ilusão,
malabarismo.
Os malabaristas da política promovem a
mistificação das massas, fazendo-as crer que o discurso é a ação, o verbo é a
obra, a palavra é sinônimo de verdade. Muitos se transformam em dândis, com seu
prazer em surpreender, espantar.
Dizia Baudelaire: “creio que existe na ação
política uma certa dose de provocação, por ser preciso suscitar uma reação”.
O dândi quer chamara atenção, provocar,
criar impacto. E, não raro, cai no exagero, fazendo da estética sua ação
política mais forte. É useiro e vezeiro na arte do exagero. Nele, a verdade
acaba mas a história tem sempre continuidade. Por conta da verborragia.
Ademais, a cultura oral é uma das tradições
mais ricas de nosso país. Basta uma pequena viagem pela monumental obra do
incomparável Luís da Câmara Cascudo, um potiguar boêmio, bonachão e denso, que
produziu a mais fecunda e abrangente obra sobre a cultura popular brasileira.
A tradição de oralidade penetrou
profundamente nas veias, mentes e corações da representação política, a ponto
de se atribuir, por muito tempo, a grandeza dos homens públicos não aos
projetos e feitos empreendidos, mas ao domínio do verbo no palanque ou na
tribuna parlamentar.
Duas historinhas, muito conhecidas, mostram
os polos do discurso tradicional da política. A primeira é a do baiano,
embevecido com a retórica complicada, cheia de palavras difíceis, de seu
candidato em comício numa pequena cidade interiorana. Não se cansou de bater
palmas, concluindo categórico: “não entendi nada do que o homem falou, mas
falou bonito; vai levar meu voto”.
A segunda historinha é a do candidato, que,
arrebatado, enérgico, espumando de civismo, discorria sobre o sentido da
liberdade. Argumentava que um povo livre sabe escolher os seus caminhos, seus
governantes, eleger os seus vereadores, prefeitos e deputados. Para entusiasmar
a multidão, levou um passarinho numa gaiola, que deveria ser solto no clímax do
discurso.
No momento certo, tirou o passarinho da
gaiola, e com ele na mão direita, jogou o verbo: “a liberdade é o sonho do
homem, o desejo de construir seu espaço, sua vida, com orgulho, sem
subserviência, sem opressão; Deus (citar Deus é sempre bom) nos deu a liberdade
para fazermos dela o instrumento de nossa dignidade; quero que todos vocês,
hoje, aqui e agora, comprometam-se com o ideal do homem livre. Para simbolizar
esse compromisso, vamos aplaudir soltar esse passarinho, que vai ganhar o céu
da liberdade”.
Ao abrir a mão, viu que esmagara o
passarinho. A frustração por ter matado o bichinho acabou com a euforia e as
vaias substituíram os aplausos. Foi um desastre. É sempre assim quando não se
controla a emoção. Em se tratando do discurso político, a emoção mata
frequentemente a razão.
Juntando-se, então, o narcisista e o
demagogo, o verborrágico e o reizinho cheio de empáfia, tem-se a receita de um
perfil que ainda teima em se apresentar às massas nacionais. É o encontro do
ruim com o pior, de Narciso com aquela figura canhestra tão bem caracterizada
por Chico Anísio, Justo Veríssimo.
E quando isso ocorre, a política volta a
ser aquilo que Paul Valéry mais temia: “a arte de impedir que as pessoas cuidem
do que lhes dizem respeito”.
Nesses tempos de grande influência da
mídia, é bom ter cuidado, porque a espetacularização da política pode
significar a ruína dos atores. Não enganam mais como antigamente; são pegos
quando escondem o lixo debaixo do tapete; e flagrados quando a maquiagem
procura disfarçar a deficiência do pensamento.
Mulheres e homens publicos desses nossos
trópicos: reflitam, neste apagar de luzes de 2011, sobre o exercício da
representação coletiva. Assumam o compromisso de trazer a verdade para a seara
da política. O Estado-Espetáculo aprecia os efeitos mágicos do circo político.
Como dizia Luis XIV, “os povos gostam do
espetáculo; através dele, dominamos seu espírito e seu coração”. Mas há um limite
para tudo. Um dia, mais cedo ou mais tarde, o povo, cansado de ver tanto
malabarismo, fará a mágica que nenhum representante gostaria de ver: mandá-lo
de volta para sua casa sem o passaporte do mandato popular.
Gaudêncio Torquato, jornalista,
professsor titular da USP, é consultor político e de comunicação. Twitter:
@gaudtorquato
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