Geralmente criadas após momentos de ruptura, Constituições costumam marcar a história de um povo, decretando o fim de um período e abrindo alas para um novo arranjo político.
Na França, a Constituição de 1791 foi fruto da Revolução Francesa. Os Estados Unidos, por sua vez, até hoje mantêm a constituição feita em 1787 na esteira do seu processo de independência.
O documento americano chegou a ser único no mundo. Suas três primeiras palavras (“We, the People” / “Nós, o povo”) mostraram pela primeira vez na história um país onde o poder não emanaria do rei, de deuses, ou de aristocratas – mas do povo. Diferente do usual até então, não seria o povo a servir ao estado, mas o povo que faria o estado servi-lo, atendendo propósitos específicos.
Ao contrário dos EUA, nós somos um país que sofre com rupturas com extrema facilidade. Não por acaso, desde nossa independência tivemos nove constituições diferentes. Algumas com o único propósito de dar poderes ditatoriais ao chefe do Executivo e acabar com qualquer resquício de liberdade garantido pelo texto constitucional anterior.
A Constituição de 1988, por outro lado, pretendia o oposto – queria garantir que o Brasil nunca mais enfrentasse uma ditadura. Ainda assim, na Assembleia Constituinte, sobravam deputados e senadores que até pouco tempo tinham apoiado o regime militar.
A falta de um espírito unificador, que fosse além do fim da ditadura, somado ao momento histórico que o mundo vivia, com o Muro de Berlim ainda em pé, acabaram produzindo umas das constituições mais bizarras e sem sentido da história. E se você não acredita nisso, precisa dar uma olhada nos pontos a seguir.
1. Promete o Jardim do Éden, mas entrega o Brasil
Em sua redação original, o Art. 6 da Constituição pôs como direito de todo brasileiro “a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Sucessivas emendas incluíram cada vez mais coisas – na última, o transporte também virou um direito social.
Constitucionalistas chamam este tipo de norma, que apenas enuncia “direitos”, mas não diz como alcançá-los, de normas programáticas enunciativas. Afirmam que sua função é justamente apontar o caminho que o país deve seguir, e não o tornar perfeito da noite para o dia. A despeito disso, sua existência define o trabalho que juízes, legisladores e administradores públicos farão.
Ao declarar que a saúde é um direito de todos e dever do estado, o constituinte abriu espaço para uma enxurrada de ações judiciais exigindo tratamentos e remédios cada vez mais caros. E não há como escapar da lógica: ao atender o pedido de um paciente, o magistrado pode estar deixando vários outros sem atendimento.
Em São Paulo, um orçamento de R$ 600 milhões atende 700 mil pacientes inscritos no programa normal de assistência farmacêutica. Não obstante, nos últimos anos, a Secretaria de Saúde teve que separar R$ 900 milhões de reais para atender 2.000 pessoas que conseguiram na Justiça o direito de o estado bancar remédios de alto custo.
Apesar de medidas como esta serem defendidas em nome dos mais pobres, a judicialização destas questões tem como efeito imediato o aumento das desigualdades. No estado de São Paulo, apenas 1 em cada 10 processos sobre o tema tem origem na Defensoria Pública, que atende aqueles que não tem como pagar um advogado.
Em 2014, quase 7 em cada 10 pedidos tinham como base laudos de médicos que atenderam na rede privada. Se o texto diz que todos têm “direito à saúde”, a bem da verdade quem pode pagar bons advogados consegue furar a fila. E o brasileiro comum continua onde sempre esteve.
Hoje, constituintes importantes admitem que não sabiam exatamente o que estavam fazendo. O fato da União Soviética ter se desintegrado apenas alguns anos depois, fez com que muitos membros da Assembleia Constituinte sonhassem com um estado máximo, interventor de tudo e todos, durante a votação de projetos.
Para Nelson Jobim, ex-ministro da Defesa nos governos Lula e Dilma, ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF), ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso e ex-Constituinte pelo PMDB, o fato da maioria expressiva da Constituinte não ter tido experiências no Executivo também contribuiu para a falta de visão do que poderia ocorrer.
Infelizmente, o legislador constitucional não percebeu o básico: qualidade de vida está diretamente associada à riqueza. E riqueza está associada à liberdade.
Países mais livres economicamente permitem que seus cidadãos possam ganhar seu próprio dinheiro e “comprar” seus direitos sociais. Países mensurados de forma objetiva como mais livres têm renda per capita 800% maior que os menos livres. O crescimento do seu PIB também é três vezes mais rápido.
Países livres também são mais felizes. Um estudo recente feito com 86 países pela pesquisadora Kai Gehring, da University of Goettingen, na Alemanha, concluiu que a liberdade, além de estar associada à riqueza, eleva o bem-estar dos cidadãos, ao permitir que eles busquem sua própria felicidade, e não aquela definida pelo estado.
A nossa Constituição nos joga na contramão deste caminho. Um rol tão grande de serviços a serem ofertados pelo estado exige cargas tributárias e controle cada vez maiores, inviabilizando completamente a produção de riqueza pelo povo.
2. Dificulta a administração do país
“O que ocorreria se se um dos melhores gestores do mundo estivesse à frente do Ministério da Saúde e tivesse conseguido de forma excepcional renegociar todos os contratos com fornecedores e economizar 50% do orçamento do ministério?”
Foi essa a pergunta que os economistas Bernard Appy, Marcos de Barros Lisboa, Marcos Mendes, e Sérgio Lazzarini fizeram no artigo “A Rigidez do Gasto Público: Problemas e Soluções”. A resposta? Bem, ela é surpreendente: o estado continuaria gastando a mesma coisa.
Os gastos com saúde, educação e assistência social foram enrijecidos pela Constituição. O gestor não tem margem para mexer nesses parâmetros, exceto hipótese de conseguir aprovar uma emenda constitucional.
O que num primeiro momento parece positivo, vem se revelando um desastre. Como a quantidade de dinheiro repassada não pode diminuir, o gestor público tem incentivos para sempre gastar mais, dando pouco importância à eficiência. Em apenas 7 anos, entre 2007 e 2014, o Ministério da Educação contratou 90 mil pessoas. O resultado? A despeito do orçamento do MEC aumentar continuamente, a qualidade do ensino permanece estagnada.
Para piorar, a rigidez imposta pelo texto constitucional acaba ignorando transformações básicas de um país. Com a fertilidade caindo, em breve o Brasil terá que gastar menos com educação e mais com idosos – mas o orçamento continuará o mesmo.
De fato, como a Constituição determina que os gastos devem ser feitos de forma anual, o administrador público fica impossibilitado de organizar uma poupança para tempos ruins. Quando a crise chega e o país se vê obrigado a economizar para sair mais rápido dela, a nossa estrutura de gastos, imposta pela Constituição, nos amarra no fundo do poço.
3. É corporativista em sua essência
Como você deve supor, a palavra “povo” aparece com frequência ao longo da nossa Constituição: nove vezes. O que você desconhece, provavelmente, é que “Ordem dos Advogados do Brasil” aparece apenas duas vezes menos. É evidente que a OAB não tem a mesma importância para o país que o seu povo, mas o dado curioso revela muito sobre como a Constituição foi escrita.
O jurista Miguel Reale Júnior costumava dizer que “a Constituinte servia da tanga à toga”. Todos os grupos de pressão se sentiram bem representados pelo texto constitucional.
As grandes indústrias garantiram financiamento, pago com dinheiro do trabalhador, para “programas de desenvolvimento econômico“ promovidos através do BNDES. As empresas jornalísticas? Proibiram a concorrência de fora do país. Esportistas? É dever do estado fomentar suas práticas.
O lobby foi tão intenso dentro da Assembleia Constituinte, que a Constituição faz menção até mesmo a um colégio. De acordo com o parágrafo II, do art. 242, o colégio Pedro II deve permanecer sendo sustentado e administrado pelo governo federal.
Nelson Jobim afirma que naquela época ele aprendeu o que se chamava de sociedade civil:
“Eram grupos organizados, que queriam defender seus interesses ou congelar seus interesses na apreensão do Estado.”
Em parte, muita coisa acabou indo parar dentro da Constituição por um descuido. Para aprovar um texto na Assembleia Constituinte, era necessário apenas conquistar maioria absoluta em uma sessão unicameral. Uma legislação que fosse passar pelo rito comum precisava de maioria absoluta ou simples na Câmara, a depender do tipo de lei, depois no Senado, e ser sancionada pelo Chefe do Executivo, que ainda poderia vetá-la. Em dado momento, foi mais fácil por um texto na Constituição do que na legislação ordinária – e os nossos congressistas abusaram deste poder.
4. Protege a liberdade de expressão, mas nem tanto
A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos é um dos grandes pilares em defesa da liberdade de expressão em todo o mundo. O texto é claro: o Congresso não tem o poder de fazer leis que restrinjam a liberdade de expressão, o exercício de uma religião ou a livre associação.
E a coisa é levada a sério. Quando a Ku Klux Klan teve seu direito de marchar nas ruas do estado do Texas, a União pelas Liberdades Civis Americanas escalou o advogado negro Anthony P. Griffin para defendê-los. Griffin não via problema em defender a liberdade de expressão de racistas – um membro da Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor, ele lembrava que na década de 60 era a sua organização a ser protegida pela Primeira Emenda dos ataques da lei.
Na terra dos ianques, a liberdade de expressão não é encarada apenas como um simples direito, mas uma forma pela qual a sociedade pode promover mudanças. De tal maneira que, até mesmo o discurso feito de forma anônima é protegido. A ideia é que indivíduos com opiniões impopulares não se sintam compelidos a ficarem calados.
Não poderia ser diferente – grandes documentos foram escritos dessa forma. Alexander Hamilton e James Madison, por exemplo: escreveram os famosos “Artigos Federalistas”, em que argumentam pela ratificação da Constituição americana, sob pseudônimos.
No Brasil, a nossa Constituição trata o assunto de maneira diferente. Ela até diz que a manifestação de pensamento é livre, mas o anonimato, por outro lado, é vedado, nos fazendo perder umas das mais importantes proteções ao discurso.
Além disso, a interpretação que os nossos magistrados dão a esta proteção é restrita. Enquanto nos EUA, a Suprema Corte decidiu que ocupantes de cargos públicos só podem processar veículos de notícias se provarem a má fé de quem publicou uma reportagem errada, aqui, um dos maiores jornais do país, O Estado de São Paulo, encontra-se há oito anos sem poder falar dos desdobramentos da Operação Boi Barrica, que atinge José Sarney e sua família.
Somado a isso, o lobby feito para impedir a entrada de estrangeiros no mercado jornalístico no Brasil, e a obrigação que o serviço de radiodifusão seja feita apenas mediante concessão – isto é, aprovação do estado – tornou nossa imprensa incrivelmente concentrada e blindada à concorrência externa.
O Repórter Sem Fronteiras vê isso como um problema. Além da concentração, uma parte razoável da mídia brasileira, principalmente no interior do país, está ligada a grupos políticos e depende do dinheiro estatal. No Maranhão, o Sistema Mirante de Comunicação – dono da TV Mirante, afiliada local da Globo, Mirante FM e Jornal Mirante – até 2014 pertencia formalmente a Fernando Sarney, filho de José Sarney.
Com a internet, portais de notícias estrangeiros como El País e BBC vêm tentando se estabelecer no país. Mas a festa pode não durar muito. Recentemente, a Associação Nacional de Jornais (ANJ), ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.613) pedindo para que o Supremo Tribunal Federal dê fim às suas atividades.
5. Ela é propositalmente ambígua
No Brasil, o direito de propriedade é garantido, desde que a propriedade cumpra sua função social e sua desapropriação por necessidade ou interesse público não sejam necessários, caso em que o estado pagará justa e prévia indenização em dinheiro – exceto, é claro, nos casos que a Constituição prever o contrário.
Em apenas três incisos do mesmo artigo (XXII, XII, e XIV do Art. 5) é possível encontrar tanto garantias, quanto ressalvas às garantias, e garantias dentro das ressalvas, que, por sua vez, também apresentam ressalvas.
É difícil compreender o que a Constituição brasileira protege e como. Apesar de parecer um erro em um primeiro momento, a ambiguidade do texto aprovado foi simplesmente uma característica do processo constituinte.
De acordo com constituintes da época, se o texto era muito claro, ele simplesmente não era aprovado. Para se obter maioria, era necessário encaixar um sem número de interesses, e a única forma possível seria expandindo os meios por quais a futura norma poderia ser interpretada.
Neste cenário, a insegurança jurídica reina. Todos os dias uma nova interpretação constitucional válida é apresentada e aceita pelo Poder Judiciário. O que em outras palavras escancara que a estabilidade e previsibilidade que um país tanto precisa para crescer simplesmente não existe por aqui.
6. Já tem 95 emendas
Ao longo dos seus quase 300 anos de história, a Constituição dos Estados Unidos da América recebeu 27 emendas. Uma média de nove emendas por século – sendo que aproximadamente um terço delas foi escrita 1791, no que ficou conhecido como Declaração de Direitos, e visava expandir as garantias e liberdades do americano, e outras duas foram gastas proibindo e depois liberando a produção de bebidas alcoólicas.
Faz ideia de quantas vezes nós apelamos para esse artifício? 95 vezes desde sua promulgação em 1988. Uma média superior a trinta emendas por década.
Entendeu o ponto aqui? Não é tarefa exclusiva minha dizer que a Constituição não faz sentido: legislatura após legislatura, a Constituição tem que ser reformada porque é impossível lidar com sua versão original.
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