Yan Boechat/Folhapress | ||
Yacoub Chattah (à esq.) e os irmãos Albert e Rachel Caméo fazem orações em sinagoga de Damasco |
Albert e Rachel Caméo não gostam de revelar a idade.
"É uma deselegância perguntar isso a uma mulher, você não sabia?", questiona ela, mostrando-se incomodada, enquanto anda lentamente pelas ruelas de pedras no bairro judeu da cidade antiga de Damasco.
O caminhar vagaroso, as mãos trêmulas de Albert e até a maquiagem pesada que Rachel usa na manhã de um sábado revelam que os dois irmãos já passaram dos 70.
Conhecem tudo e todos ali.
Cumprimentam os soldados que fazem a segurança nos incontáveis checkpoints, conversam com os comerciantes que acabaram de abrir os mercadinhos de secos e molhados tão tradicionais desta parte da cidade.
Já perto de um palacete judeu da época Otomana que foi transformado em hotel, cruzam com um homem que leva uma cabra e um cabrito.
"Esta é mais inteligente que um soldado do Daesh", diz o dono dos animais, em árabe, usando o acrônimo depreciativo para a facção terrorista Estado Islâmico e apontando a cabra.
Os três gargalham. O homem encerra a piada dizendo que batizou o cabrito com o nome de Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do EI. Mais risos.
Albert e Rachel fazem parte de uma das comunidades judias mais antigas do mundo e que, ano a ano, está desaparecendo. Além deles, apenas outros 13 judeus ainda vivem em Damasco, uma cidade fundamental no desenvolvimento e na história da cultura judaica.
Todos solteiros, todos sem filhos, todos sem muita esperança de um dia encontrarem um par para suas vidas.
"Nós somos os últimos, todos se foram, todos morreram", conta Rachel, num misto de espanhol e francês. "Não havia com quem casar, não ficaram homens e mulheres o suficiente, ficamos só", diza ela, que mora com o irmão Albert e a irmã Bela.
DIÁSPORA
Os judeus sírios se contavam às dezenas de milhares até o século 19. Eles sempre habitaram a Síria, em especial Damasco, desde os tempos de Davi, segundo a Bíblia, e desde alguns séculos antes do nascimento de cristo, segundo diversos historiadores.
A diáspora judia ganhou força com a criação de Israel, em 1948, e se acentuou nas guerras seguintes entre países árabes e o Estado judeu.
De 1967 a 1991, os judeus foram proibidos de deixar a Síria, em uma política austera de Hafez al-Assad, pai do atual líder sírio, Bashar al-Assad. Em 1991, um acordo intermediado pelos EUA fez com que a Síria liberasse a saída de todos os judeus que tivessem o desejo, desde que não emigrassem para Israel.
Eram quase 4.000 na época. A maioria deixou o país.
Entre as poucas centenas que permaneceram na Síria, estavam Albert e as irmãs.
"Escolhemos ficar porque aqui é nossa casa, aqui está nossa vida, aqui estão nossos negócios", conta Albert, uma espécie de líder da comunidade remanescente, enquanto busca em seu bolso a chave para abrir uma porta de madeira grande e larga, típica de uma casa damasquina da época otomana.
A porta se abre para um jardim acanhado, com alguns poucos bancos, duas ou três árvores e uma casa de janelas amplas e uma porta em metal com o símbolo das 12 tribos de Israel encravado.
Entre mais de uma dezena de sinagogas ainda existentes na Síria, esta é a única que mantém serviços regularmente todos os sábados e onde Rachel, Albert e os judeus sírios que não estão velhos demais para se locomover vão fazer suas orações.
É uma sinagoga ampla, detalhadamente ornada e com uma Torá de ao menos 500 anos escrita em pele de gazela. "Não sabemos exatamente a idade, mas acredito que possa ter até mil anos, os mais antigos sempre estiveram aqui na Rússia", diz ele.
"Há uma [sinagoga] com uma Torá ainda mais antiga, de mais de mil anos, mas ela está sob o domínio dos extremistas, aqui mesmo na periferia de Damasco, e achamos que tudo foi destruído. Estamos muito tristes com isso", afirma Yacoub Chattah, 48, outro integrante da comunidade que se juntou aos dois irmãos para as orações.
GUARDIÕES
Rachel, Albert e Yacoub se sentem responsáveis pelas tradições e das instalações judaicas em Damasco.
Não falam hebraico, só árabe, mas mantêm um senso de irmandade com Israel, país que não podem visitar caso queiram viver na Síria.
Protegidos pelo regime, dizem não sofrer perseguição por serem judeus e afirmam conviver harmoniosamente tanto com os muçulmanos sunitas, xiitas e alauítas quanto com os cristãos, drusos e outras minorias que compõem o mosaico religioso da Síria que não caiu nas mãos dos rebeldes muçulmanos extremistas, quase todos ligados à Al Qaeda e ao Estado Islâmico.
Os três, assim como os outros da comunidade, viajavam com frequência para os Estados Unidos e outros países para rever os parentes que decidiram partir.
"Nós sempre podíamos ir a qualquer parte, sem problema. Agora com o [presidente dos EUA Donald] Trump tudo mudou, não conseguimos ir mais para Nova York, onde muito dos nossos parentes estão. Já faz quase dois anos que não vejo meus sobrinhos", conta Yacoub.
Cidadãos sírios, os judeus de Damasco não podem ter o passaporte israelense.
Não podem, nem mesmo, ir a Jerusalém, distante pouco mais de cem quilômetros dali. E com as políticas restritivas de Trump, têm imensa dificuldade de conseguir visto para sair da Síria.
Quem mais sofre com a situação é Yacoub, designer que trabalha na joalheria da família, no centro de Damasco, com a irmã. Aos 48 anos, ele decidiu que não há mais tempo a perder. Quer se casar, de qualquer forma.
"Não pode ser qualquer garota, ela precisa ser judia, né?", diz. "Mas como vou encontrar uma aqui, preciso ir a Nova York achar uma, mas agora não consigo ir".
Rachel, uma professora de francês aposentada, olha para a câmera do repórter e pergunta: "Posso mandar uma mensagem para o Trump?"
Claro que pode.
"Trump, nós somos sírios e somos judeus, não somos terroristas, só queremos visitar nossa família", diz, olhos fixos na lente. "Será que o senhor pode nos ajudar?"
Terminada a mensagem, ela pergunta, em espanhol, se ficou bom.
"Vamos ver se aquele cachorro sarnento nos ajuda a conseguir o maldito visto", afirma. "Quero visitar meu irmão que mora no México."
"É uma deselegância perguntar isso a uma mulher, você não sabia?", questiona ela, mostrando-se incomodada, enquanto anda lentamente pelas ruelas de pedras no bairro judeu da cidade antiga de Damasco.
O caminhar vagaroso, as mãos trêmulas de Albert e até a maquiagem pesada que Rachel usa na manhã de um sábado revelam que os dois irmãos já passaram dos 70.
Conhecem tudo e todos ali.
Cumprimentam os soldados que fazem a segurança nos incontáveis checkpoints, conversam com os comerciantes que acabaram de abrir os mercadinhos de secos e molhados tão tradicionais desta parte da cidade.
Já perto de um palacete judeu da época Otomana que foi transformado em hotel, cruzam com um homem que leva uma cabra e um cabrito.
"Esta é mais inteligente que um soldado do Daesh", diz o dono dos animais, em árabe, usando o acrônimo depreciativo para a facção terrorista Estado Islâmico e apontando a cabra.
Os três gargalham. O homem encerra a piada dizendo que batizou o cabrito com o nome de Abu Bakr al-Baghdadi, o líder do EI. Mais risos.
Albert e Rachel fazem parte de uma das comunidades judias mais antigas do mundo e que, ano a ano, está desaparecendo. Além deles, apenas outros 13 judeus ainda vivem em Damasco, uma cidade fundamental no desenvolvimento e na história da cultura judaica.
Todos solteiros, todos sem filhos, todos sem muita esperança de um dia encontrarem um par para suas vidas.
"Nós somos os últimos, todos se foram, todos morreram", conta Rachel, num misto de espanhol e francês. "Não havia com quem casar, não ficaram homens e mulheres o suficiente, ficamos só", diza ela, que mora com o irmão Albert e a irmã Bela.
DIÁSPORA
Os judeus sírios se contavam às dezenas de milhares até o século 19. Eles sempre habitaram a Síria, em especial Damasco, desde os tempos de Davi, segundo a Bíblia, e desde alguns séculos antes do nascimento de cristo, segundo diversos historiadores.
A diáspora judia ganhou força com a criação de Israel, em 1948, e se acentuou nas guerras seguintes entre países árabes e o Estado judeu.
De 1967 a 1991, os judeus foram proibidos de deixar a Síria, em uma política austera de Hafez al-Assad, pai do atual líder sírio, Bashar al-Assad. Em 1991, um acordo intermediado pelos EUA fez com que a Síria liberasse a saída de todos os judeus que tivessem o desejo, desde que não emigrassem para Israel.
Eram quase 4.000 na época. A maioria deixou o país.
Entre as poucas centenas que permaneceram na Síria, estavam Albert e as irmãs.
"Escolhemos ficar porque aqui é nossa casa, aqui está nossa vida, aqui estão nossos negócios", conta Albert, uma espécie de líder da comunidade remanescente, enquanto busca em seu bolso a chave para abrir uma porta de madeira grande e larga, típica de uma casa damasquina da época otomana.
A porta se abre para um jardim acanhado, com alguns poucos bancos, duas ou três árvores e uma casa de janelas amplas e uma porta em metal com o símbolo das 12 tribos de Israel encravado.
Entre mais de uma dezena de sinagogas ainda existentes na Síria, esta é a única que mantém serviços regularmente todos os sábados e onde Rachel, Albert e os judeus sírios que não estão velhos demais para se locomover vão fazer suas orações.
É uma sinagoga ampla, detalhadamente ornada e com uma Torá de ao menos 500 anos escrita em pele de gazela. "Não sabemos exatamente a idade, mas acredito que possa ter até mil anos, os mais antigos sempre estiveram aqui na Rússia", diz ele.
"Há uma [sinagoga] com uma Torá ainda mais antiga, de mais de mil anos, mas ela está sob o domínio dos extremistas, aqui mesmo na periferia de Damasco, e achamos que tudo foi destruído. Estamos muito tristes com isso", afirma Yacoub Chattah, 48, outro integrante da comunidade que se juntou aos dois irmãos para as orações.
GUARDIÕES
Rachel, Albert e Yacoub se sentem responsáveis pelas tradições e das instalações judaicas em Damasco.
Não falam hebraico, só árabe, mas mantêm um senso de irmandade com Israel, país que não podem visitar caso queiram viver na Síria.
Protegidos pelo regime, dizem não sofrer perseguição por serem judeus e afirmam conviver harmoniosamente tanto com os muçulmanos sunitas, xiitas e alauítas quanto com os cristãos, drusos e outras minorias que compõem o mosaico religioso da Síria que não caiu nas mãos dos rebeldes muçulmanos extremistas, quase todos ligados à Al Qaeda e ao Estado Islâmico.
Os três, assim como os outros da comunidade, viajavam com frequência para os Estados Unidos e outros países para rever os parentes que decidiram partir.
"Nós sempre podíamos ir a qualquer parte, sem problema. Agora com o [presidente dos EUA Donald] Trump tudo mudou, não conseguimos ir mais para Nova York, onde muito dos nossos parentes estão. Já faz quase dois anos que não vejo meus sobrinhos", conta Yacoub.
Cidadãos sírios, os judeus de Damasco não podem ter o passaporte israelense.
Não podem, nem mesmo, ir a Jerusalém, distante pouco mais de cem quilômetros dali. E com as políticas restritivas de Trump, têm imensa dificuldade de conseguir visto para sair da Síria.
Quem mais sofre com a situação é Yacoub, designer que trabalha na joalheria da família, no centro de Damasco, com a irmã. Aos 48 anos, ele decidiu que não há mais tempo a perder. Quer se casar, de qualquer forma.
"Não pode ser qualquer garota, ela precisa ser judia, né?", diz. "Mas como vou encontrar uma aqui, preciso ir a Nova York achar uma, mas agora não consigo ir".
Rachel, uma professora de francês aposentada, olha para a câmera do repórter e pergunta: "Posso mandar uma mensagem para o Trump?"
Claro que pode.
"Trump, nós somos sírios e somos judeus, não somos terroristas, só queremos visitar nossa família", diz, olhos fixos na lente. "Será que o senhor pode nos ajudar?"
Terminada a mensagem, ela pergunta, em espanhol, se ficou bom.
"Vamos ver se aquele cachorro sarnento nos ajuda a conseguir o maldito visto", afirma. "Quero visitar meu irmão que mora no México."
Nenhum comentário:
Postar um comentário