Às vezes, quando a noite esfria de repente, é como se uma cortina de nuvens cinzentas encobrisse a minha mente. Faz frio lá fora e aqui dentro. É o mesmo frio que me traz à lembrança outro dia distante. Eu andava por aí, observando as cores e descobrindo a novidade. Era uma cidade nova, de ares nunca antes aspirados por mim. Via com sincera alegria as maneiras e os costumes, sentia curiosidade e ansiedade. A vida é curta! Aproveite o agora! Levava comigo tantos lemas e mal sabia o que me esperava.
Em meio à beleza da paisagem e envolvida pelo romantismo do clima frio, um cheiro repugnante me adentrou. Um odor que penetrava em meus poros e me causava ânsia. Era um animal morto ou comida estragada? Não. Devia ser lixo em putrefação. Misturada aos outros transeuntes, eu, discretamente, procurava a origem daquele fedor. Se era curiosidade ou tortura, eu não sei. Mas queria saber o que era que paradoxalmente me atraía.
Então o enigma se revelou: o andarilho dormia sobre uma calçada esquecida. A sujeira escorria pela sarjeta dos humilhados e exalava o cheiro da indignação. Sua desgraça chamava a atenção dos que andavam por ali.
Passei pelo homem que tentava não morrer de frio, e não parei. Como todos os outros que passavam e não paravam, segui em frente, indiferente. Com pressa. Com medo. Com pena. Mas não parei.
Congelei-me por dentro ao perceber como somos fracos, egoístas e covardes. Deveria ser fácil ir até àquele ser igual a nós e oferecer-lhe ajuda. Mas sentimos repulsa pelo odor. O solstício de inverno diminuiu a claridade do nosso olhar. O sol se pôs dentro da gente, e foi mais fácil parecer cego a enfrentar o insuportável.
É… tem vento gelado que chega como um abraço da morte. Mas, de certa forma, a morte também nos aproxima da vida: participamos de campanhas de agasalhos, entregamos sopa nas ruas e doamos cobertores. Isso tudo ajuda, é bom e devemos fazer todos os anos. Ainda assim, há um inverno que teima em ser rigoroso em nossos corações.
As ruas estão desertas. Eu me recolho e me protejo da ventania, mas continua frio dentro de mim. O inverno fez solidão em meu coração. Mesmo que folhas de outono ainda enfeitem a estrada da minha alma, e que a alegria da primavera seja a espera da próxima estação, vira e mexe, preciso do inverno desse inferno em mim. Fico distante, esquecida. Quase morro, sobrevivo. Porque, na névoa cinzenta, tudo é mistério.
Há um inverno dentro de mim. Há um inverno dentro de você. Talvez, seja na junção de nossos dias arrefecidos que encontraremos mais calor humano em meio a tanta tristeza, indiferença e desigualdade. A inquietude acerca da nossa breve existência calar-se-á aos ouvidos aquecidos de vozes ansiosas por amor. E a distância que nos aproxima será como um cobertor em frente à lareira: diante fagulhas e chamas dançantes, estaremos juntos da esperança, e compreenderemos que a vida é um misterioso e doloroso milagre.