segunda-feira, 11 de abril de 2016

“Viagem ao centro da Terra” (Jaime Spitzcovsky, Folha de S.Paulo)


Ventos da última década se encarregam de demolir dogmas embalados ao longo do século 20. Recentemente, uma contribuição para fortalecer o diagnóstico veio do chanceler do Bahrein, Khalid al-Khalifa, ao disparar contra um inimigo regional e sentenciar: o Irã representa hoje ameaça maior ao pequeno país árabe do que Israel. As palavras do ministro compõem o quebra-cabeça de uma rivalidade histórica, modelada a partir de raízes religiosas (conflito entre muçulmanos xiitas e sunitas), étnicas (iranianos são de origem persa, diferente de vizinhos árabes) e geográficas (disputa por hegemonia no golfo Pérsico). Embora seja um embate esculpido ao longo de séculos, entrou em fogo brando nos idos da Guerra Fria, para recuperar ímpeto nos últimos anos. Um dos mitos mais disseminados sobre o Oriente Médio apontava a criação de Israel como fonte principal de instabilidade na região. A narrativa, ignorando turbulências de eras passadas, servia a interesses de elites do mundo árabe, hipnotizava setores importantes da opinião pública internacional e atiçava adversários da ideia de o povo judeu exercer seu direito à soberania. A distorção ganhou contornos ainda mais amplos. Construiu-se o argumento néscio e medieval de que o conflito israelo-palestino representava epicentro das mazelas da política internacional, a questão mais urgente a resolver, a fim de se estabilizar um cenário atacado também por inúmeras ameaças e desafios, da fome na África ao terrorismo global, da proliferação nuclear a alterações climáticas. Naturalmente não se trata de ignorar a necessidade de uma solução para a tragédia israelo-palestina. A busca por uma solução de dois Estados para dois povos, com garantias de segurança e viabilidade política e econômica para ambos os lados, sobrevive como alvo relevante. Mas, daí a definir o conflito, desenvolvido em território comparável ao do estado de Sergipe, como chave para livrar o planeta de vários infortúnios e apontá-lo como "espinha dorsal da agenda internacional" vai uma distância astronômica. No universo israelense, tal abordagem fortalece o discurso das forças políticas à direita. Destacam o fato de Israel ser tratado de maneira ímpar, o que justificaria a opção por estratégias menos voltadas a negociação de paz e mais apoiadas em investimentos em autodefesa, para enfrentar desmesuradas pressões externas. A ideia da centralidade do conflito israelo-palestino serviu a elites autoritárias do mundo muçulmano, para usar o drama palestino como tática diversionista. Durante décadas, a mídia local trombeteou a criação de Israel como "tragédia mor", a fim de jogar para debaixo do tapete questões como deficit democrático, anemia econômica e repressão a minorias, tão frequentes no Oriente Médio e imediações. A explosão da Primavera Árabe, em 2010-2011, com seus múltiplos e trágicos desdobramentos, colocou em xeque o mito da centralidade do conflito israelo-palestino nas agruras do Oriente Médio. O chanceler do Bahrein também. Faltam ainda, por exemplo, setores da esquerda e de mídia globais.

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