Uma reflexão a partir do caso envolvendo o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha
Em sua página no Facebook, o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, registrou, no dia 8 de agosto, um veemente protesto em relação a uma atuação específica da Advocacia-Geral da União (AGU). Afirmou o Deputado: “A Senadora Rose de Freitas entrou com uma ação no STF para suspender a votação das contas dos ex-presidentes, realizada essa semana, depois de mais de 20 anos. Essa ação tem interesses muito estranhos, e talvez tente tumultuar o processo, para que as contas do atual governo não possam ser avaliadas pela Câmara./Ela entrou com ação na qualidade de presidente da comissão sem a aprovação prévia da comissão para isso. Em função de usar a prerrogativa de presidente, solicitou e, estranhamente, obteve o patrocínio da Advocacia Geral da União assinando a causa./A AGU faz a advocacia institucional da Câmara e não poderia patrocinar causa de parlamentar contra a Câmara. A AGU tem de explicar sobre esse assunto, pois ou faz advocacia de estado ou defende os interesses que achar próprios”.
Abstraindo os aspectos ligados a intensa disputa observada na atual quadra da política brasileira, o episódio se presta, como poucos, para uma importante análise acerca do perfil de atuação da AGU (Advocacia de Estado versus Advocacia de Governo) e dos mecanismos internos adotados para a formação de decisões capitais pela instituição.
É longo e penoso o processo de construção de uma Advocacia Pública em novas bases, com valores e paradigmas alinhados à modernidade e procedimentos adequados aos novos tempos. A exata e mais radical (no sentido de profunda) compreensão e efetivação da condição de instituição de Estado da Advocacia Pública, e da Advocacia-Geral da União em particular, não é um movimento dos mais fáceis.
Perceba-se que o advogado público pauta sua atividade, quer contenciosa, quer consultiva, na legalidade em sentido amplo (ou juridicidade). Na atuação contenciosa são defendidas políticas públicas e atos administrativos sob os argumentos de serem fundados em leis e estarem em consonância com a Constituição. É certo, registre-se, a persistência de uma séria dificuldade, a ser operacionalmente superada, quanto à defesa, ou não, dos atos administrativos reputados ilegais ou inconstitucionais, considerados e devidamente tratados os espaços de razoabilidade e as convicções pessoais acerca das matérias jurídicas envolvidas. Na atuação consultiva são reconhecidas, ou não, a constitucionalidade e a legalidade de políticas públicas e atos administrativos. Ainda nessa seara podem e devem ser apontados, numa postura responsável e construtiva, os caminhos ou soluções que afastem os ilícitos de todas as ordens para a consecução da decisão política adotada. Esses são os traços mais salientes de uma advocacia de Estado.
Na advocacia de Governo (ou dos governantes), o advogado público é chamado para, diante de uma decisão pronta e acabada, necessariamente atestar a constitucionalidade e a legalidade de uma certa pretensão. Para o atingimento desse objetivo escuso pode ocorrer um chamamento direto (“uma ordem”), até mesmo efetivado depois de bem avançada a noite. Os “caminhos” podem ser mais sutis, incluindo uma “cuidadosa” seleção para inserção em “cadeias de comando” formadas por cargos comissionados e “benefícios” funcionais de vários tipos.
Na advocacia de Estado, a defesa de atos de autoridades públicas (ou representação dessas, em sentido mais amplo) não pode ser efetivada de forma acrítica, em todos os casos e em quaisquer circunstâncias. Afinal, existem inúmeras situações onde impera a ilegalidade, a imoralidade, a improbidade, a má-fé e o dolo. Nesse sentido, a atuação nessa seara reclama um olhar criterioso. Não se justifica, por exemplo, a atuação judicial em favor de autoridades quando: a) não tenham sido os atos praticados no estrito exercício das atribuições constitucionais, legais ou regulamentares; b) não tenha havido a prévia análise do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, nas situações em que a legislação assim o exige; c) tenha sido o ato impugnado praticado em dissonância com a orientação, se existente, do órgão de consultoria e assessoramento jurídico competente, que tenha apontado expressamente a inconstitucionalidade ou ilegalidade do ato, salvo se possuir outro fundamento jurídico razoável e legítimo; d) ocorra incompatibilidade com o interesse público no caso concreto; e) identificada conduta com abuso ou desvio de poder, ilegalidade, improbidade ou imoralidade administrativa, especialmente se comprovados e reconhecidos administrativamente por órgão de auditoria ou correição.
No caso concreto, antes aludido, é no mínimo preocupante, reclamando análise aprofundada e cuidadosa, a situação de fundo afirmada pelo Presidente da Câmara: “ela entrou com ação na qualidade de presidente da comissão sem a aprovação prévia da comissão para isso”. Esse aspecto faz toda a diferença porque descaracterizaria a atuação institucional regular (Advocacia de Estado) em favor da perseguição de objetivo específico e particular (Advocacia de Governo).
Esse episódio, assim como muitos outros (1) (2), aponta para a necessidade urgente de adoção de uma série de transformações institucionais significativas na Advocacia Pública para fixação e perenização da identidade de Advocacia de Estado. Especificamente na Advocacia-Geral da União (AGU) é imperioso caminhar nos seguintes sentidos:
a) a escolha do Advogado-Geral da União, dirigente máximo da instituição, pelos membros de suas carreiras jurídicas (como ocorre com o Procurador-Geral da República);
b) a fixação de espaços adequados de autonomias administrativa, orçamentária e técnica, como delineado na PEC n. 82;
c) a definição, com os instrumentos próprios, da independência técnica dos advogados públicos informativa pela responsabilidade, uniformidade e postura construtiva;
d) a realização cotidiana da atividade jurídica a partir dos vetores da participação coletiva (colegialidade) e horizontalidade. No caso em comento, dada a posição institucional das autoridades envolvidas, em especial o Presidente da Câmara dos Deputados, a decisão, pela atuação ou não, deveria ser adotada pelo Conselho Superior da instituição;
e) a eliminação de cargos comissionados ou a drástica redução do número deles com uma série de providências complementares (critérios objetivos para ocupação, escolha pelos pares, mandato, quarentena, percepção de valores reduzidos pelo exercício). Assim, a “cadeia de comando” própria da Advocacia de Governo seria desmantelada.
Observe-se que a Advocacia de Governo é tão indesejável e repulsiva que chega a se caracterizar como ilícita, justamente por afrontar a independência técnica do advogado público, devidamente consagrada na ordem jurídica. Ademais, o padrão de comportamento ínsito à Advocacia de Governo não se coaduna com os valores republicanos informados pelo princípio da supremacia do interesse público (primário).
Portanto, na República Federativa do Brasil, constituída como Estado Democrático de Direito (artigo primeiro da Constituição), só há um caminho a seguir. É preciso construir e perenizar a Advocacia de Estado por intermédio dos instrumentos institucionais adequados.
NOTAS:
(1) CÚPULA DA AGU DESPREZA O PATRIMÔNIO PÚBLICO – PARTE I. Disponível em: http://www.aldemario.adv.br/observa/desprezo.pdf.
(2) CÚPULA DA AGU DESPREZA O PATRIMÔNIO PÚBLICO – PARTE II. Disponível em: http://www.aldemario.adv.br/observa/desprezo2.pdf.
Aldemario Araujo Castro é procurador da Fazenda Nacional, professor da Universidade Católica de Brasília - UCB e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB
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