“Da penúltima vez que o vi, em Buenos Aires, foi para indicar-lhe, em um mapa, um cantinho secreto dos Bosques de Palermo onde poderia, por fim, beijar Mercedes sem ser interrompido”, contou o escritor argentino Tomás Eloy Martínez sobre a emblemática passagem do escritor colombiano Gabriel García Márquez e sua esposa pela cidade.
Era inverno em 1967 (agosto) quando um empobrecido García Márquez e seu recém publicado livro Cem Anos de Solidão desembarcaram na capital argentina, ainda sem fama nem glória. Deixaria a cidade dias depois laureado pela fama.
Trazido a Buenos Aires por Eloy Martínez e por outros companheiros de ofício, a pretexto de um concurso literário, Gabo, como era conhecido em sua intimidade, desceu do avião faminto. Trazia a fome das longas horas de viagem e o desejo de empanturrar-se de churrasco argentino.
Martínez diz ter testemunhado o momento preciso no qual Gabo deixava de ser o obscuro escritor de círculos literários, para abraçar a fama. O romance que o levaria à celebridade foi publicado, pela primeira vez, em Buenos Aires.
Um beijo em Mercedes em Estocolmo. Foto: Topham / AP
Passou incólume pela cidade por três dias. Até que, descoberto, começou a sentir o peso da fama que lhe estava por vir.
Certa manhã, da janela de um café portenho, viu uma dona de casa trazer do supermercado uma cópia de “Cem Anos de Solidão” entre alfaces e tomates.
Não tardou muito para que o escritor se distinguisse dos outros turistas que visitavam a capital. Descoberto em um teatro, foi ovacionado pelo público. “Nesse momento preciso sentir que a fama descia do céu e pousava sobre os ombros do novelista como se fosse ela mesma uma criatura viva”, descreveu Martínez, afirmando que, depois do episódio, García Márquez foi engolido pelo sucesso.
Nunca mais voltou a Buenos Aires.
“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era, então, uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e, para mencioná-las, se precisava apontar com o dedo”, descreve em um dos trechos do livro que o catapultou à celebridade.
Pode-se sonhar que, em seus últimos momentos, como o Coronel Aureliano Buendia, Gabo teve uma lembrança agradável. Talvez o beijo que deu a sós em Mercedes, debaixo de uma árvore despida pelo inverno nos Bosques de Palermo, quando seu mundo era recente.
Gabriela G. Antunes é jornalista e nômade. Cresceu no Brasil, mas morou nos Estados Unidos e Espanha antes de se apaixonar por Buenos Aires. Na cidade, trabalhou no jornal Buenos Aires Herald e hoje é uma das editoras da versão em português do jornal Clarín. Escreve aqui todos os sábados.
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