quarta-feira, 12 de março de 2014

A DESMEMORIADA ESQUERDA LATINOAMERICANA, por Elgien


Artigo escrito digno de se tirar o chapéu, que mandei para o Magu traduzir e postar. E observar que, pela redação, provavelmente o autor é de esquerda. Héctor Schamis é professor na Georgetown University, Washington, DC (Distrito Federal).
A crise da Venezuela surpreende uma esquerda desmemoriada, conceitualmente perdida, desconectada de sua própria história e normativamente à deriva.images-3
Em meados dos anos 1970, boa parte da América Latina estava sob regimes militares. Segundo diziam, era para combater a subversão armada que buscava tomar o poder. Para os hierarcas militares não era uma guerra fria nem convencional, onde se vê as cores dos inimigos à sua frente; essa era uma guerra “suja”. A estratégia marxista era confundir-se com a população civil e se tinha de operar na clandestinidade como eles. Assim justificaram a repressão ilegal e indiscriminada. Ocorria geralmente nas noites, para atemorizar a população. Estava a cargo de pessoas sem uniforme em veículos sem identificação, com os quais levavam os detidos até centros de detenção clandestinos. Ali alguns deles eram legalizados como detidos e transferidos a prisões oficiais. Outros, a maioria, eram executados. Desapareciam, já que não se expedia documentação alguma de sua morte; o terrorismo de Estado em ação.
Com Carter na presidência dos EUA, entretanto, começou uma nova política exterior: a promoção dos direitos humanos. Videla e Pinochet o viram como uma capitulação de Washington ante o comunismo, mas a esquerda o via como uma proteção. Começaram a se dar conta que essa noção era muito mais que uma formalidade da democracia burguesa.  O governo de Carter deu respaldo à OEA, e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos enfrentou com convicção as ações ilegais desses Estados repressivos. Foi assim que se instalaram os direitos humanos na agenda progressista da região. Assim se fez a democratização dos anos 1980.
Os líderes da América Latina de hoje, nos governos e nos organismos multilaterais, foram parte dessa história. Alguns presos, muitos exilados, a maioria com familiares e amigos desaparecidos, e quase todos tendo sido vítimas de violação de direitos. Que pensaram, em seu íntimo, sobre a crise da Venezuela, especialmente vendo os paramilitares em motocicletas, os chamados Tupamaros, atirando a queima-roupa pelas ruas escuras de São Cristovão ou Caracas?  Tudo isso enquanto as forças regulares apenas olhavam e as mulheres, chorando aos gritos a partir de suas janelas, gravavam os vídeos com seus celulares. O que vão dizer sobre os mortos em sua volta, com tiros na cabeça, as torturas e vexames denunciados, as detenções ilegais, a censura e a expulsão de jornalistas?
A crise na Venezuela será um divisor de águas para toda a região, porque surpreende uma esquerda desmemoriada, conceitualmente perdida, desconectada de sua própria história e normativamente à deriva. Daí as respostas – ou as não-respostas – a esta crise: O silêncio, a confusão, o balbucio sem sentido, até a negação, mecanismo de defesa inconsciente, que neste caso, parece ser bem consciente.
Dilma e Bachelet, igualmente Mujica (que pensará nos Tupamaros) e também a OEA, se fecharam em mutismo, no Foro. Mercosul também nada disse, e isso porque, por muitíssimo menos que isso – a destituição pacífica de Lugo – expulsaram o Paraguai do bloco.
Os que não falam são mais lúcidos, na verdade, porque os que falam soam como se fosse parte de uma confissão: desconhecem como funciona uma democracia e não lhes importa mostrar isso; ignoram os que são os direitos humanos e não se importam. Em Cuba, o jornal Granma se referiu à importancia de Maduro para assegurar o fornecimento normal de petróleo – há muito que Cuba trocou o vermelho romântico pelo negro realista. Correa – em véspera de ser derrotado na eleição do governo da cidade de Quito – e Morales apoiaram Maduro sem muitos argumentos, como era de se esperar.
Cristina Kirchner se lançou à sua verborragia de costume e aproveitou a cadeia nacional para apoiar fortemente Maduro por ter sido o ganhador legítimo das últimas eleições. Ela não compreende que uma vitória eleitoral não outorga um cheque em branco; que a sociedade tem direito a reclamar contra a insegurança, a inflação, o desabastecimento e a censura – que também acontece na Argentina – e que é obrigação de um governo resolver esses problemas. Muito menos ela entende que uma eleição, por si, não define um governo como democrático. A isto se deve somar a maneira de como exercer o poder, é dizer de acordo com preceitos constitucionais que garantem e reforçam direitos de cidadania. Será que alguém lhe disse que Salazar, Stroessner e Suharto, entre muitos outros, também chegaram ao poder pelo voto? Há algum livro de História que os considere democráticos?
O próprio Maduro falou em cadeia na noite de sexta-feira. Referiu-se aos governos “progressistas, de esquerda e socialistas, que estão transformando a América Latina, conseguindo a união do continente, defendendo os pobres e o cidadão comum”. Também falou de “maioria permanente”, uma noção alienígena de democracia, pois,na verdade, a democracia se baseia exatamente na alternância. E também se queixou de quem expressou preocupação pela violação de direitos – Martinelli, Piñera, Santos, Alan Garcia – por intrometer-se em assuntos internos da Venezuela. Maduro obviamente ignora que essa é, precisamente, a caracteristica dos direitos humanos e os tratados internacionais que os consagram – a jurisdição é universal.  Isto se passou exatamente com Pinochet, em Londres, em 1998, por exemplo. Um juiz espanhol (a propósito, também em silêncio, hoje), o acusou diante de um tribunal britânico por crimes de lesa-humanidade, invocando o direito internacional.
Hoje a crise venezuelana é profunda e incerta, mas vem por a descoberto uma outra crise, quem sabe mais profunda e ainda mais incerta frente ao futuro: a da esquerda da América Latina, perdida intelectualmente e sobrecarregada de uma hipocrisia quase inimaginável, uma verdadeira crise de identidade. A violência na Venezuela, hoje, será um divisor de águas porque o seu legado mais perverso a própria esquerda democráticao sofrerá. O verdadeiro progressismo tem diante de si uma titânica tarefa: descontaminar-se e recuperar uma linguagem que lhe foi roubada pelo autoritarismo bolivariano e que, no caminho, acabou por esvaziar seu significado. Tamanha ironia, considerando que o camarada Maduro se enfrenta o tempo todo com os fascistas (segundo ele).

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