O Estado de S.Paulo - 03/01
Talvez não escrevesse uma crônica sobre calvície e ética, ou sobre implante de cabelo e responsabilidade, o que vem a ser quase a mesma coisa. Ética ou compromisso moral nada tem a ver com os carecas ou cabeludos. Aliás, não pensava nisso quando ouvi a voz de uma leitora:
"Como? O presidente do Senado voa num avião da FAB até Recife para fazer implante de milhares de fios de cabelo, e você não diz nada?".
O que eu posso dizer à estimada leitora, que me cobrou uma crônica sobre mais uma das inúmeras cretinices de tantos legisladores? O nome da moça logo me fez lembrar uma grande narrativa épica da Antiguidade, por isso sorri quando ela disse: Quem fala é Euricleia. Depois revelou o motivo do telefonema.
Perdão por mencionar seu nome, leitora. Quando você me telefonou naquela tarde azulada, eu estava observando uma borboleta estranha, as asas com anéis amarelos e esverdeados, antenas brancas e finas, pareciam de cristal. De onde teria vindo essa raridade? Ela revoluteava perto do gato, hipnotizado pelo movimento das asas. Pensava na iminência desse encontro perigoso: meu felino e um ser livre e frágil; já imaginava o salto certeiro, as asas com belos anéis, despedaçadas. Quanta falta faria essa borboleta graciosa no jardinzinho do meu refúgio, onde a romãzeira e a goiabeira sobrevivem no ar empestado da metrópole!
Enquanto ouvia a leitora revoltada com a atitude do presidente do Senado - uma voz que subia de tom e quase sufocava de tanta indignação, dizendo que o povo pagava pela vaidade de um péssimo político -, eu engolia seco, maquinando uma manobra sutil para distrair o felino enfeitiçado.
Enfeitiçado? Uma súbita metamorfose acontecera na alma dele: já não era o bichano manso que se espreguiçava entre livros e folhas de papel, ou mirava com ar reflexivo a lâmpada acesa, inteiramente perdido no tempo presente, que é o próprio tempo dos animais. Agora o gato parecia regredir a um estado selvagem, o olhar ameaçador, de demônio, fixado na inocente vítima.
Me aproximei do jardim, minha atenção dividida entre a possível crueldade do felino e a voz da leitora, entre a circunstância de um encontro num humilde jardim e o clamor contra a impunidade. Confuso, disse em voz baixa à leitora: Não sei o que fazer, moça. Estou diante de um impasse.
E logo ouvi uma frase: "Estamos perdidos, isso sim".
De repente, o gato virou a cabeça para o lado direito, deu um salto e chispou em direção ao muro. As folhas da trepadeira se agitaram, um vasinho com uma hortênsia foi derrubado, uma batalha breve e invisível tumultuou o pequeno jardim. O gato reapareceu com ar triunfante, abocanhando um rato cinzento, que sequer tremia. Largou o defunto aos meus pés, como se fosse uma oferenda a seu dono afetuoso.
Rato, rato, precioso rato... Tua aparição foi providencial: saciaste a fúria de um felino e ainda salvaste uma linda borboleta.
Quis contar esse epílogo a Euricleia, mas a voz sumira do celular, e o felino esquecera aquela que seria sua primeira presa da tarde.
Talvez não escrevesse uma crônica sobre calvície e ética, ou sobre implante de cabelo e responsabilidade, o que vem a ser quase a mesma coisa. Ética ou compromisso moral nada tem a ver com os carecas ou cabeludos. Aliás, não pensava nisso quando ouvi a voz de uma leitora:
"Como? O presidente do Senado voa num avião da FAB até Recife para fazer implante de milhares de fios de cabelo, e você não diz nada?".
O que eu posso dizer à estimada leitora, que me cobrou uma crônica sobre mais uma das inúmeras cretinices de tantos legisladores? O nome da moça logo me fez lembrar uma grande narrativa épica da Antiguidade, por isso sorri quando ela disse: Quem fala é Euricleia. Depois revelou o motivo do telefonema.
Perdão por mencionar seu nome, leitora. Quando você me telefonou naquela tarde azulada, eu estava observando uma borboleta estranha, as asas com anéis amarelos e esverdeados, antenas brancas e finas, pareciam de cristal. De onde teria vindo essa raridade? Ela revoluteava perto do gato, hipnotizado pelo movimento das asas. Pensava na iminência desse encontro perigoso: meu felino e um ser livre e frágil; já imaginava o salto certeiro, as asas com belos anéis, despedaçadas. Quanta falta faria essa borboleta graciosa no jardinzinho do meu refúgio, onde a romãzeira e a goiabeira sobrevivem no ar empestado da metrópole!
Enquanto ouvia a leitora revoltada com a atitude do presidente do Senado - uma voz que subia de tom e quase sufocava de tanta indignação, dizendo que o povo pagava pela vaidade de um péssimo político -, eu engolia seco, maquinando uma manobra sutil para distrair o felino enfeitiçado.
Enfeitiçado? Uma súbita metamorfose acontecera na alma dele: já não era o bichano manso que se espreguiçava entre livros e folhas de papel, ou mirava com ar reflexivo a lâmpada acesa, inteiramente perdido no tempo presente, que é o próprio tempo dos animais. Agora o gato parecia regredir a um estado selvagem, o olhar ameaçador, de demônio, fixado na inocente vítima.
Me aproximei do jardim, minha atenção dividida entre a possível crueldade do felino e a voz da leitora, entre a circunstância de um encontro num humilde jardim e o clamor contra a impunidade. Confuso, disse em voz baixa à leitora: Não sei o que fazer, moça. Estou diante de um impasse.
E logo ouvi uma frase: "Estamos perdidos, isso sim".
De repente, o gato virou a cabeça para o lado direito, deu um salto e chispou em direção ao muro. As folhas da trepadeira se agitaram, um vasinho com uma hortênsia foi derrubado, uma batalha breve e invisível tumultuou o pequeno jardim. O gato reapareceu com ar triunfante, abocanhando um rato cinzento, que sequer tremia. Largou o defunto aos meus pés, como se fosse uma oferenda a seu dono afetuoso.
Rato, rato, precioso rato... Tua aparição foi providencial: saciaste a fúria de um felino e ainda salvaste uma linda borboleta.
Quis contar esse epílogo a Euricleia, mas a voz sumira do celular, e o felino esquecera aquela que seria sua primeira presa da tarde.
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