sexta-feira, 20 de setembro de 2013

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA Expectativas


CARLOS VIEIRA
A vida começa com anseios e desejos. Há, segundo os psicanalistas, uma preconcepção de um “objeto salvador”, de alguém que receba, assista e acolha as necessidades físicas e os desejos do infante. Guimarães Rosa, pelos lábios de Riobaldo diz que o que incomoda e angustia não é a morte, o que é mais perigoso é o nascimento. Nasce-se sem saber o que está para acontecer. Diria um feto falante: “quem me receberá quando no mundo chegar? Atenderá às minhas condições de sobrevivência? Terá disponibilidade amorosa para me receber? A lata do lixo será a minha entrada na vida pós-uterina? Serei amado, odiado, querido, jogado às traças, entregue a outra pessoa? Meus pais me desejarão, ou farão tráfico comigo? 
Nascer é o mistério! O mistério, a incerteza, a probabilidade de ser amado. Ser amado é a grande expectativa inconsciente do ser humano. Uma vez transposta a barreira entre o útero e a realidade externa, a vida se apresenta como ela é! A existência predominante de uma mãe amorosa é a condição única para desenvolver o sentimento inconsciente e consciente de ser querido, amado e desejado. A presença da mãe, ainda que às vezes ausente, é o inicio da introjeção e incorporação do sentimento de autoestima. O amor-próprio parece que advém da oportunidade de ser amado além da capacidade inata para amar. Quando uma mãe, ou outra pessoa com a função materna se apresenta mais ausente do que presente, instaura-se a “falta” do objeto salvador. A maioria das pessoas suporta as adversidades da vida quando tem dentro de si a certeza, ainda que relativa, de que alguém em algum lugar irá acolhê-las. Essa é a maior expectativa do ser humano e o modelo universal do “amor de mãe”. O ser humano não tem a certeza de que se será amado, pois faz parte da realidade psíquica de qualquer pessoa, tanto o amor quanto o ódio. Espera-se que o amor predomine sobre o ódio. Ainda que a pessoa traga sua capacidade inata de amar, o amor de mãe funda a experiência básica de suportar as “faltas do, e no mundo”. 
Hoje quero me referir a uma síndrome estudada por um psicanalista francês, André Green, denominada de “a síndrome da mãe morta”, a cruel experiência psíquica de uma pessoa que teve desde o inicio da sua vida, a frustração da expectativa de ser amada. 
Trata-se de mães depressivas, mães que após o parto não respondem às necessidades do infante, e faltam como objeto de acolhimento, deixando para sempre uma vivencia muito dolorosa de desamor. Mesmo que outras pessoas tentem substituir, o vazio amoroso fica instalado na memória. O infante mais tarde adulto, terá dificuldades enormes para suportar experiências de desafeto, de separação e de perda real ou imaginária. Vive dentro de si mesmo uma incerteza maior, uma falta de fé nos outros e na vida, uma constante ameaça de ser abandonado, uma labilidade maior para conviver com frustrações e desapontamentos. A sabedoria popular vai chamar isso de “gato escaldado tem medo de água fria. Transforma-se numa pessoa que sempre quer atrair a atenção dos outros, quer sempre saber se é querida, pois tanto sua autoestima como sua crença no amor do outro são deficientes. 
Aproveito essa experiência para aproximá-la à observação da Poesia. Freud sempre enfatizou que após tudo que ele estudou e pesquisou sobre a experiência psíquica dos homens, os poetas tinham chegado antes. Lendo um belo poema de Affonso Romano de Sant’Anna – SEPARAÇÃO – fiquei pensando, refletindo sobre a apreensão do nosso poeta acerca do desafeto, do desamor, da expectativa negativa de ser amado. 

“Desmontar a casa/ e o amor. Despregar/ os sentimentos/ das paredes e lençóis./ Recolher as cortinas/ após a tempestade/ das conversas. 
O amor não resistiu/ às balas, pragas, flores,/ e corpos de intermeio. 
Empilhar livros, quadros,/ discos e remorsos./ Esperar o infernal/ juízo final do desamor. 
Vizinhos se assustam de manhã/ ante os destroços junto à porta: pareciam se amar tanto !
Houve um tempo:/ uma casa de campo, / fotos de Veneza,/ um tempo em que sorridente/ o amor aglutinava festas e jantares. 
Amou-se um certo modo de despir-se,/ de pentear-se,/ Amou-se um sorriso e um certo/ modo de botar a mesa. Amou-se/ um certo modo de amar. 
No entanto, o amor bate em retirada/ com suas roupas amassadas, tropas de insultos,/ malas desesperadas, soluços embargados. 
Faltou amor no amor?/ Gastou-se o amor no amor?/ Furtou-se o amor?/ No quarto dos filhos/ outra derrota à vista:/ bonecos e brinquedos pendem/ numa colagem de afetos natimortos./ O amor ruiu e tem pressa de ir embora/ envergonhado./ Erguerá outra casa, o amor?/ Escolherá objetos, morará na praia? Viajará na neve e na neblina? 
Tonto, perplexo, sem rumo/ um corpo sai porta afora/ com pedaços de passado na cabeça/ e um impreciso futuro./ No peito o coração pesa/ mais que uma mala de chumbo.”
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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