quarta-feira, 5 de junho de 2013

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA O homem que queria ser Deus


CARLOS VIEIRA
Ele nasceu como todo ser humano. Nasceu como “anjo caído”, ou seja, foi expulso do paraíso após a desobediência ao Divino, e se fez humano, falível, vulnerável, limitado e mortal a contragosto. Às vezes encontramos na vida pessoas que vivem mergulhadas em verdadeiro inferno, movidas de ódio e ressentimento por não pertencerem ao grupo dos divinos, dos mitos, dos santos, dos não humanos. A humanidade para essas pessoas é a marca do menor, do fraco, do babaca para não dizer, do malfeito, no sentido da sua origem. Diga-se de passagem, esses seres humanos, inconscientemente, têm um profundo ódio a seus pais: foram eles (os pais) que não o geraram perfeito. 
Mas na fantasia se dá jeito para tudo, ainda que na fantasia. O bebê vive desde sua chegada ao mundo uma relação de fusão com sua mãe, e por um bom tempo essa fusão cria uma ilusão de plenitude, de completude e de um sentimento oceânico de ser perfeito. Para não me delongar muito, prossigo enfatizando que essas fantasias grandiosas, fantasias de onipotência, vão acompanhar as crianças em suas brincadeiras infantis e na dramatização em serem heróis, em outras palavras, nascem aí os Batman da vida! Entretanto, é bom que se tenha em mente que são brincadeiras adequadas (não gosto da palavra normal), pois em sua essência são um arranjo para dar conta da angústia de precariedade da condição humana. 
Digo que é bom que se tenha em mente, pois, são fantasias que fazem parte do crescimento e do desenvolvimento da personalidade. À medida que vão crescendo e o “princípio de realidade”, entra em cena, as brincadeiras infantis vão sendo substituídas pelas brincadeiras dos adultos: jogos, criatividade, interesses lúdicos, música, arte, ciência ou qualquer atividade que sublime e civilize esse desejo atroz de desejar serem Deus. 
Acontece que o nosso personagem de hoje não tolerou muito bem toda essa história que estou narrando. Tal como Ricardo III, personagem-rei de Shakespeare que nutriu em toda a sua vida o ódio à sua origem e contraiu uma depressão melancólica pelo resto de sua vida, carrega em seus ombros psíquicos um ressentimento eterno. Diga-se aqui pra nós, que o homem era Rei, mas era pouco, como sempre foi pouco para meu personagem ter nascido humano. 
A vida foi passando como um rio de Heráclito, sem retorno ao passado; os acontecimentos foram chegando com mortes de pessoas queridas, de parentes; os filhos foram tendo doenças corriqueiras da infância; ele foi acometido de uma pneumonia grave, mas não chegou a óbito. Sua mãe morre quando ele tinha vinte e cinco anos: tragédia, pavor, dor psíquica profunda, um luto que demorou a ser feito, se é que ainda foi feito. Petrônio caiu na real. Mas caiu aparentemente, pois a partir desses acontecimentos foi elaborando uma série de raciocínios mágicos obsessivos. Intensificou sua crença na religião, agora com um fundamentalismo indiscutível, pois a tudo devia se agarrar para que não lhe acontecesse nada que o colocasse diante da experiência de ser mortal. Mas, a despeito de ficar livre de um pensamento ameaçador, meu personagem começou a diminuir a vontade de viver; sair menos para não sofrer riscos; restringir sua vida ao trabalho. Certos arranjos psíquicos antecipam a morte dentro da vida. Dito de outra maneira: a pessoa não vitaliza mais sua existência, pois vitalidade, criatividade, expansão, desenvolvimento, mudanças e progresso passam a ser ameaças, riscos e exposição demais! 
Uma vez li uma notícia que uma criança pulou do décimo andar, vestido de Homem-aranha, achando que não lhe aconteceria nada. Não precisa dizer o que aconteceu! Quantos homens na vida se vestem de “homens aranhas” e não se dão conta que, a despeito de quererem ser Deus, têm uma vida poderosa, de bens materiais, de poder político, religioso, mafioso, ladrão, mas dia a dia sentem um vazio existencial e não atinam que sua depressão mostra a pretensiosidade narcísica da arrogância, onipotência e grandiosidade. Resido numa cidade, Brasília, uma amostra “quase coletiva” desse desejo de grandeza aliada ao Poder. São muitos poderes por esses lados do cerrado goiano! 
Sabemos que a arrogância, os desejos de onipotência, onisciência e onipresença são veredas que todos os homens tomam para negar a singeleza de sua natureza. Do outro lado do espelho de Narciso, o que ele nunca pode enxergar, encontra-se a forma humana da limitação, da incompletude e não da perfeição. Guimarães Rosa em seu “Sertão” escreveu: “... O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não são sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou... Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...” 
Petrônio ainda se debate entre as veredas da vida e da sua vida interna. Ainda fica entretido em seu pensar, um pensar racional, que não enxerga a emocionalidade, e por isso é um pensar vazio. Segundo um provérbio chinês: “quem não reflete, repete”, sua vida é um eterno labirinto sem encontrar saídas. 
Deixo agora, leitor, fragmentos de um poema de Jorge Luis Borges: “Baltasar Gracián” 
“Que sentiria ao contemplar de frente/ os Arquétipos e os Esplendores?/Talvez chorando dissesse: Inutilmente/ busquei sustentos em sombras e enganos. 
Que aconteceu ao ver o inexorável/ sol de Deus, a Verdade, com seu fogo?/ Talvez com a luz de Deus ficasse cego/ na metade da glória interminável. 
Sei de outra conclusão./ Dado a seus temas minúsculos,/ Gracián não viu a glória/ e até hoje resolve na memória/ labirintos, trocadilhos e emblemas.”

Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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