Paulo Nogueira (Diário do Centro do Mundo)
Os coreanos são um modelo de dedicação ao trabalho. Num levantamento feito pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Coreia do Sul ficou na ponta entre os 30 países pesquisados no quesito carga horária dos trabalhadores.
Em média, o coreano trabalha 2 193 horas por ano. Isso representa mais de 500 horas acima do tempo gasto no escritório por empregados de países como Inglaterra, França e Holanda. (No Brasil, costuma-se falar em 1 800 horas.) Raros coreanos tiram de uma só vez as duas semanas de férias a que têm direito anualmente.
Em geral, quebram o descanso em pequenas partes. Um sinal da presença dos coreanos nas empresas são as torres de escritórios iluminadas até altas horas em cidades como Seul, a capital. Palmas, portanto, para os coreanos?
Não é bem assim. O governo e muitas empresas do país estão batalhando para que as pessoas trabalhem menos — e melhor. No mesmo estudo da OCDE, a Coreia do Sul ficou entre os lanternas em produtividade, medida pelo cruzamento entre o produto interno bruto do país e as horas trabalhadas.
“Trabalho contínuo em grande quantidade é um resquício da era industrial”, disse um líder coreano. Na era digital, a palavra-chave para a prosperidade de empresas e países é inovação. E inovar pode não combinar com trabalho exaustivo, até porque este leva as pessoas a reproduzir procedimentos, à falta de tempo para criar e experimentar.
ELOGIO DA PREGUIÇA
Num livro provocativo do final do século 19, ainda hoje reverenciado por esquerdistas, o escritor Paul Lafargue fez o “elogio da preguiça”. Segundo ele, os empresários é que estavam ardilosamente por trás do culto às jornadas longas de trabalho, uma vez que o benefício era exclusivamente deles.
Lafargue escreveu em pleno desabrochar da era industrial. Mais de 100 anos depois, o mundo corporativo teria caminhado na direção das teses controvertidas de Lafargue?
Caso se estabeleça um consenso entre as empresas de que a inovação demanda alguma espécie de ócio, a resposta parece ser: sim. Mas, a despeito do caso coreano, não existem ainda sinais suficientes para afirmar que esse consenso seja iminente.
Mesmo assim, vão aparecendo aqui e ali histórias que deixariam Lafargue satisfeito. Numa delas, a Netflix, empresa americana do ramo de aluguel de DVDs e vídeos que fez da Blockbuster sucata, aboliu o controle de férias. “Esse tipo de coisa é da era industrial”, justificou a direção da companhia.
A Netflix afirma estar em busca de alto desempenho, e não de “funcionários acorrentados às mesas de trabalho”. Lá, o empregado sai de férias quando quiser e pelo tempo que desejar — desde que cumpra com excelência suas tarefas.
No mundo das coisas concretas, isso significa que hoje cada funcionário da Netflix tira cerca de 25 dias de férias por ano, o dobro da média americana. A Netflix tem sido presença frequente nas listas das melhores empresas para trabalhar nos Estados Unidos.
NOVA ZELÂNDIA
Alguns países parecem estar mais próximos da utopia lafarguiana do que outros. Um estudo mostrou que apenas 6% das empresas da Nova Zelândia esperam que seus empregados estejam disponíveis nas férias. Em países asiáticos, como Singapura, esse número sobe para 90%. É mais ou menos este o patamar da Coreia, mas medidas fortes estão sendo tomadas para mudar isso.
Um dos principais bancos locais, o Shinhan, decidiu bloquear o acesso dos empregados em férias ao sistema corporativo de computação.
“Se o funcionário tentar acessar nosso sistema quando estiver de folga, não vai conseguir”, diz Kim O-hyun, executivo do Shinhan em Seul. Mudar a cultura de devoção ao trabalho tão arraigada entre os coreanos é tarefa de proporções épicas, sobretudo na velha geração que tirou o país da miséria no pós-guerra à base de suor, suor e ainda suor.
Veja, por exemplo, o caso do presidente do Banco Central da Coreia, Kim Choong-soo, de 63 anos. Num jantar oferecido à imprensa para comemorar seu primeiro ano no Banco Central, Kim disse o seguinte: “Não vale a pena sequer conversar com alguém que não tenha passado pela experiência de varar pelo menos três noites seguidas para conseguir alguma coisa. Não entendo as pessoas que não trabalham duro. Nunca vi ninguém morrer de trabalhar. Você morre porque bebe muito, ou fuma demais, e não por excesso de trabalho”.
As maiores esperanças de mudança, compreensivelmente, estão depositadas nos jovens, também eles pressionados por uma carga excessiva nas escolas e universidades. Têm causado indignação os repetidos casos de suicídio entre estudantes, e os jovens buscam hoje uma vida melhor.
“A velha guarda, que esteve por trás do boom econômico da Coreia, simplesmente é viciada em trabalhar o tempo todo”, diz Yang Yoon, professor de psicologia da universidade coreana Ewha Womans.
A tecnologia, evidentemente, tem papel decisivo no acúmulo de horas trabalhadas. Aparelhos como o iPhone e o iPad podem deixar as pessoas conectadas ao escritório em regime de 24 por 7. Caso você se vicie nos gadgets, são enormes as chances de que sua carga seja exponencialmente elevada.
“WORKLIDAY”
Num artigo recente, a jornalista Lucy Kellaway, do jornal inglês Financial Times, se confessou adepta do que ela chamou de “worliday”, uma mistura de work com holiday. Isso significa trabalho e férias simultaneamente. “Traférias”, ou coisa parecida, caso queiramos verter para o português.
Ela descreveu assim um dia típico de suas férias de verão inglês: “Eu acordava, mandava alguns e-mails e depois dava uma caminhada à beira-mar. Mais tarde, escrevia um artigo sentada debaixo de uma janela com vista para um riacho”.
Lucy, convém notar, estaria impedida de gozar seu “worliday” se trabalhasse para o banco coreano Shinhan. Seu caso — em que virtualmente todo executivo moderno pode se enxergar — mostra quanto é complicado, na era digital, separar folga de trabalho para, assim, reduzir as jornadas.
Frequentemente, como acontece com Lucy, a iniciativa de misturar as coisas parte do empregado, e não da empresa. Se a pessoa não se controla, pode acrescentar um novo número ao regime de trabalho de 24 por 7: o 365. O pensamento convencional — tão bem captado no passado por Lafargue — afirma que as empresas ficariam felizes com isso.
Mas olhe mais uma vez para a Coreia. A luta, ali, para mudar a cultura de sobretrabalho é sugestiva. Se se espalharem por outras partes suspeitas de que a inovação sofre com horas ilimitadas no escritório, as companhias mundo afora talvez tenham de imitar gestos como o do Shinhan.
Nesse quadro, os empregados ouviriam de seus empregadores uma frase que poderia sair dos lábios radicais de Paul Lafargue: “Trabalhem menos”.
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