Caberá a pergunta se a Nike, a Oakley ou a Anheuser-Bush de nada sabiam ou nada suspeitavam contra seu atleta de ouro. Alguma vez quiseram saber?
Dorrit Harazim, O Globo
Assim como José Dirceu e outros mensaleiros condenados pelo Supremo Tribunal Federal, o americano Lance Armstrong, maior ciclista de todos os tempos movido a doping, também tem sua empedernida legião de fiéis.
Essa tropa de choque renitente é movida a saudosismo, lealdade, manipulação e, sobretudo, interesses. Sempre que provas ou indícios, denúncias ou acusações adquirem volume avassalador ou irrefutável, ela encontra refúgio na afirmação de que se trata do linchamento público de um herói. Ou, à falta de outro argumento, de que “todo mundo faz a mesma coisa”.
A dimensão da idolatria ao atleta nascido no Texas, mesmo fora da esfera do esporte, explica a facilidade com que essa tropa de fiéis sempre desqualificou qualquer denúncia. “Trata-se de uma caça às bruxas com financiamento do governo”, era uma das linhas de defesa mais frequentes de sua equipe de advogados.
“Passei por mais de 500 testes antidoping e nenhum jamais resultou positivo”, defendia-se o próprio atleta, omitindo o fato de que à época em que foi colhido o material não existiam exames capazes de detectar EPO ou doping sanguíneo.
Não fosse o congelamento de seis amostras em 1999, retestadas oito anos atrás, seus primeiros resultados positivos teriam se perdido. “Ele é muito forte, está bem para quem teve a carreira e seu sustento arrancados”, diz hoje outro de seus advogados, atualizando o discurso para a atual campanha de empatia com um caído.
A própria doença de Armstrong solidificou o seu status de herói nacional: interrupção da carreira aos 25 anos por um câncer de testículos grau 4, quase letal, a história da superação narrada em livro, a construção de uma obra caritativa de grande visibilidade e apelo popular, turbinada pelas famosas pulseirinhas amarelas Livestrong que arrecadaram US$ 26 milhões só no primeiro ano de vendas.
Isso tudo, antes de seu retorno triunfal às pistas. “Lance deixou de ser apenas um ciclista”, declarou em 1977 seu agente Bill Stapleton. “Devido à superação do câncer, a sua marca agora adquire outra envergadura. Ele está na iminência de fazer a transição para outro patamar de celebridade.”
A partir daí, Lance Armstrong foi o roteirista de sua meteórica carreira, centrada, como declarou, no lema “vencer a qualquer custo”. Em tom monocórdio, esclareceu: “Decidi fazer qualquer coisa para ganhar — e isso é bom.”
Para isso, engolia pílulas a 50km da chegada, outras a 30km da chegada, controlava o estoque de doping da equipe, ensinava como tomar EPO (apelidou-a de “Edgar Poe”) a cada 3 ou 4 dias, embarcava em jato privado para a retirada de 500cc de sangue e camuflava eventuais hematomas usando camisas de manga comprida, denunciavam ex-colegas. Seu apartamento em Gerone, na Espanha, tornou-se o quartel-general da operação.
Na entrevista em duas partes concedida esta semana à apresentadora Oprah Winfrey, Armstrong correu o risco calculado de romper com seus súditos mais leais. Admitiu ter recorrido a doping durante 13 anos, dos primórdios de sua carreira até chegar ao apogeu, em 2005, como o “Homem de Aço”.
Fez sua confissão pública no mesmo tom impessoal e controlado com que mentiu por tantos anos. Tampouco mudou o olhar gélido com que brindava seus adversários depois de vencer uma prova.
Na entrevista, manteve-se blindado: confessou mas não explicou, reconheceu “falha de caráter” mas não pediu desculpas por ter perseguido, ameaçado e questionado a honra de colegas. Teve a chance de esclarecer os cantos mais sombrios do porão do esporte, mas não quis acelerar o roteiro para sua eventual reabilitação.
O uso generalizado de testosterona, cortisona, hormônio de crescimento, autotransfusão de sangue e EPO (o hormônio sintético que aumenta a produção de glóbulos vermelhos) por Armstrong e sua equipe, embora conhecido, jamais fora admitido.
Um mapeamento minucioso feito pela Agência Antidoping dos Estados Unidos (Usada) ao longo de dois anos resultara num relatório de mais de mil páginas, divulgado três meses atrás. E este, por sua vez, acarretou a perda de todos os títulos mundiais conquistados pelo atleta e seu banimento da prática de qualquer esporte olímpico para o resto da vida.
Mas a Usada e o governo americano, que mantém aberta uma investigação federal paralela, querem ir mais fundo. E para isso uma colaboração de Armstrong, apelidado de “Bernie Madoff do esporte” por ter conseguido manter a fraude tanto tempo, seria crucial.
A velocista Marion Jones, estrelíssima dos Jogos de Atlanta, em 2000, com cinco medalhas olímpicas no pescoço, também passou anos negando seu envolvimento em outro vasto esquema de doping.
Acabou por fazer confissão chorosa, cumpriu pena de seis meses por perjúrio e jamais retornou às pistas. No caso de Armstrong, contudo, a acusação é bem maior: a de ter liderado o programa de doping mais sofisticado, profissional e exitoso da história do esporte.
A intenção da Usada é conseguir montar uma Comissão da Verdade e de Reconciliação capaz de pegar todos os tentáculos do programa de doping — a começar pelo papel da própria União Internacional de Ciclismo, dos grandes patrocinadores e das equipes.
A U. S. Postal de Armstrong, por exemplo, investiu US$ 32,2 milhões na equipe entre 2004 e 2011 e faturou mais de US$ 103 milhões em marketing — 320% de retorno, portanto.
Caberá, então, a pergunta se a Nike, a Oakley ou a Anheuser-Bush de nada sabiam ou nada suspeitavam contra seu atleta de ouro. Alguma vez quiseram saber? “Sempre que um ciclista é flagrado, o sistema se proclama chocado e se declara completamente contrário à prática do doping. Tacha o culpado de ovelha negra e tudo continua igual”, constata o alemão Jörg Jaksche, já aposentado.
Talvez nem tudo. Para os crédulos inveterados, a vitória do britânico Bradley Wiggins no Tour de France 2012, seguida de sua conquista do ouro nos Jogos de Londres, é um alento. Wiggins demonstrou que é possível vencer fazendo apenas o que deve: pedalar.
Dorrit Harazim é jornalista
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