quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A MANOBRA DA CARRETA



Luiz Berto
Na abençoada tarde palmarense, eu tomava uma cerveja gelada com um amigo mineiro que se dispusera a conhecer as excelências da terrinha, após alguma insistência de minha parte. Viajamos alguns milhares de quilômetros, curtindo estes estradões de meu Deus, e demos com os costados em Palmares, numa manhã de sol. Ele vibrava com aquele ambiente de festa-todo-dia e de tá-tudo-bom-e-vai-melhorar que se respira no verão de Pernambuco.rr Os muros das ruas pichados anunciando os bailes no Clube Ferroviário, e os carros de propaganda se cruzando com seu berreiro completavam a alegria do carrossel. Além da cerveja irrepreensivelmente gelada que se serve nos bares.
Estávamos justamente comentando sobre o quanto de coisa esquisita acontece por ali. O que há de mais inusitado só deixa para desaguar em Palmares. Aos pouquinhos, os meninos começaram a descer, primeiro devagar e depois às carreiras, no rumo do Colégio das Freiras. A seguir, os homens e, logo após, também as mulheres se desembestaram para engrossar a multidão. Curiosos, já prenunciando mais uma, largamos a cerveja e nos dirigimos ao local. De longe, avistamos uma enorme carreta, desses com 18 pneus, metade numa rua e metade em outra. Pensamos em atropelamento ou batida e apressamos o passo.
Uma dona-de-casa nos ultrapassou com um menino encangado nas ancas e arrastando mais três pela mão. Suava e recomendava pressa às crianças:
- Se nós não se avexa, num dá tempo de vê.
Um sapateiro passou correndo, nu da cintura para cima, óculos de grau, e segurando um sapato no qual estivera trabalhando até que avistara a carreta. Era gente de entupir a rua. Chegamos, nos integramos à multidão e, depois de nos inteirarmos do assunto, sentamos nos degraus da porta de uma venda que havia em frente e mandamos descer uma cerveja para, assim bem acomodados, podermos assistir ao espetáculo.
A carreta estava vindo do sul do país, tinha placa do Paraná, com uma carga para Natal. Ao passar em Palmares, ao invés de seguir por fora da cidade, na outra margem do rio, rumo ao Recife, o motorista resolvera entrar naquela terra diferente, e aí começou a novela. A carreta, gigantesca e pesada, entupia as ruas estreitas e desiguais. Até que, chegando no oitão do Colégio das Freiras, tentou entrar na Rua Coronel Izácio e entalou: nem pra frente, nem pra trás.
A multidão ia aumentando e ajudava a manobra aos gritos:
- Mais pra frente!
- Vai bater no muro!
- Pra trás uma beirinha só…
O motorista suava na cabina e parecia assustado com a multidão. Diabo de terra que juntava gente para ver uma carreta manobrar! De vez em quando, ele descia e se juntava ao povo para tirar medidas e verificar suas chances de sucesso na manobra. Os motoristas da cidade estacionavam seus carros e vinham, solícitos, prestar solidariedade ao colega. Milímetro a milímetro, para frente e para trás, a carreta se enroscava cada vez mais, e a multidão não parava de crescer e opinar. O sapateiro se espantava e examinava a placa com seus óculos de grau:
- Dezoito “pnéis”. Apucarana, Paraná. Tá é fodido. Sim, senhor…
Alguns especulavam sobre a carga, bem protegida por uma lona. Os meninos se penduravam na carroceria, e as mulheres soltavam gritinhos quando a carreta se encostava perigosamente no muro das freiras.
O meu amigo mineiro estava extasiado e, enquanto tomava cerveja, também ajudava na manobra, gritando junto com a multidão.
- Vai que dá! Aí tá bom, agora pra trás.
Um tempo comprido, sem conta. A rua completamente tomada, pelo povo e pela carreta. Aos poucos, o motorista foi conseguindo completar a manobra. O suor gotejava em seu rosto; tirava a camisa e cavalgava sua máquina de peito nu.
De repente, um grito uníssono escapou da boca de todos:
- Conseguiu!
Uma salva de palmas irrompeu espontaneamente junto com os gritos de viva. O motorista endireitou a carreta na beira do meio-fio e vestiu a camisa. Subiu no estribo e olhou a multidão. Nova salva de palmas. Ele acenou e olhou para o relógio, calculando o atraso.
A carreta foi-se arrastando lentamente, até sumir no fim da rua.
Meu amigo olhava espantado a multidão se dissolvendo entre comentários e risos. Embicou o último copo de cerveja e me tomou pelo braço:
- É mais espantoso ainda do que o que você diz.
(Do livro “A Prisão de São Benedito”, edição de 1982)

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