domingo, 21 de outubro de 2012

A democracia autoritária, por Gaudêncio Torquato


Democracia autoritária? Essa figura existe no dicionário de política? O conceito, que expressa incongruência, pautou, dias atrás, os argumentos de dois ex-presidentes de República, Fernando Henrique Cardoso e Alan Garcia, durante sessão da Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), realizada em São Paulo.
O brasileiro e o peruano denunciavam o retrocesso político que ameaça os meios de comunicação na América Latina, decorrente de “uma espécie de democracia autoritária”, que, apesar de se estribar em vitórias eleitorais, despreza valores democráticos como liberdade de expressão e direito à informação.
A inoculação do vírus autoritário no corpo democrático, discutido pelos participantes durante o evento, se faz ver, aqui e ao derredor, por intermitentes manifestações (e concretizada em ações, como na Venezuela, Equador e Argentina) de interlocutores governamentais e partidários sobre a necessidade de estabelecer controles sobre a mídia.
O voto tem sido a arma sacada pela governança “democrático-autoritária” para exercer a vontade e ditar regras aos regimes latino-americanos.
Não sem razão o ex-mandatário peruano lembra que os pleitos eleitorais e a separação dos Poderes já não são suficientes para definir os valores da democracia. Pois uma de suas vigas centrais – a liberdade de expressão – é despedaçada todas as vezes em que mandatários, à moda dos caudilhos, impõem sanções à imprensa.
Não fossem a reação da própria mídia e a indignação de pólos sociais contra o viés autoritário de governos, mordaças contra ela já teriam se multiplicado.
O fato é que a liturgia que envolve o altar democrático tem sido conspurcada em partes do planeta, o que sugere a questão: Por que tal propensão autoritária? E por que floresce com maior abundância nos jardins do continente?
A análise começa com um pouco de história. A comunicação, no formato da massificação das ideias, nasceu em 1450 numa sociedade autoritária. Firmou-se sobre o primado do Estado como ente superior ao indivíduo na escala dos valores sociais. Serviu como esteio da unidade de pensamento e da ação, formando a base para a continuidade dos governantes, os herdeiros monárquicos; os nobres, que a usavam para proteger sua identidade na política e na guerra; e os dirigentes da Igreja Romana, sobre os quais pesava a responsabilidade de proteger a revelação divina.
O autoritarismo refluiu ante a expansão dos princípios liberais, cujo escopo situava o Homem, independente e racional, acima do Estado. Cabia a este prover os meios capazes de propiciar o máximo de felicidade humana.
O preceito autoritário dá vez ao axioma libertário, assim sintetizado por John Stuart Mill no ensaio On Liberty: “Se toda a humanidade, com exceção de uma pessoa, tiver certa opinião, e apenas esta pessoa defender opinião contrária, a humanidade não abrigaria mais razão em silenciá-la do que ela à humanidade”.
Esta visão iluminou os códigos da sociedade democrática, conforme se vê na Constituição norte-americana, cuja Primeira Emenda assim reza: “O Congresso não poderá formular nenhuma lei... que limite a liberdade de opinião, ou a liberdade de imprensa”.
Ou, ainda, na Quarta Emenda que prescreve: “Nenhum Estado poderá formular ou aplicar qualquer lei que limite os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos”.
Na América Latina, o viés autoritário tem sido mais acentuado. A explicação pode estar no aparato que fincou profundas raízes, a partir do vasto e milenar Império Inca, com seus grandes caciques e, depois, o poderio espanhol, povoado por reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e corregedores, todos inclinados a implantar regimes de caráter autocrático.
A propósito, Maurice Duverger utiliza esta modelagem para explicar a opção latino-americana por um presidencialismo de caráter imperial, ao contrário do sistema parlamentarista, que vicejou na Europa e inspirado na ideologia liberal da Revolução francesa.
Aliás, o timoneiro Simon Bolívar, que tanto faz a cabeça do comandante venezuelano Hugo Chávez, foi um dos primeiros a retratar a vocação latino-americana para o personalismo: “Não há boa fé na América nem entre os homens nem entre as Nações. Os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento”.
Observando a contundência das batalhas eleitorais, inclusive as nossas, constata-se o acerto (e a atualidade) da profecia bolivariana.
O Brasil não escapa ao pendor autoritário, importado pela colonização portuguesa e ramificado na árvore patrimonialista. Fernando Henrique, que enxerga na contemporaneidade o nascimento de “uma democracia autoritária”, certamente há de registrar a disposição monocrática que grassa em nossos costumes desde a velha Constituição de 1824, que atribuía a Chefia do Executivo ao imperador.
O presidencialismo brasileiro é um desfile de mandatários que vestem o manto de pais da Nação, beneméritos, heróis, Salvadores da Pátria.
Ademais, por aqui, os direitos foram implantados de maneira invertida, contribuindo para enxertar a seara democrática com sementes autoritárias. Implantamos, primeiro, os direitos sociais (veja-se a legislação social-trabalhista e previdenciária do ciclo getulista); depois, os políticos e, por último, os civis, ao contrário do modelo clássico da Cidadania, que começa com as liberdades civis.
Não por acaso, faz parte da nossa cultura o hábito de “mamar nas tetas do Estado”, sob as quais se desenvolve uma cidadania passiva. A receita do bolo completa-se com o fermento populista, estocado nos bornais de meia dúzia de perfis. Fermento usado para insuflar as massas a partir de uma liturgia assistencialista.
As estacas autoritárias fincadas ao redor do arco de valores democráticos funcionam como barreiras ao livre exercício da expressão. Jornais e revistas passam a ser o alvo predileto dos cultores de uma ordem, que desfralda, de um lado, a bandeira da liberdade, e, de outro, a tarja negra da coação.

Gaudêncio Torquatojornalista, professor titular da USP é consultor político e de comunicação. Twitter: @gaudtorquato

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