sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Jet skis, banana boats e os bons cristãos


Marcelo Carneiro da Cunha
De São Paulo

Criança morreu após ser atropelada por um jet ski em Bertioga, litoral de São Paulo (Foto: Edson Lopes Jr/Terra)
E estimados milhares de leitores, cá estamos em plena Quaresma, todos leves e recuperados em nosso cristianismo pelo ritual renovador do Carnaval. Agora basta nos abstermos de carnes, em todos os sentidos, nos abstermos de todos os sentidos e seguirmos firmes pelos próximos quarenta dias, cada um de nós praticamente um Bento 16, um Silas Malafaia, um Anthony Garotinho - cada um de nós um excelente cristão. Nem todos, claro. Durante o carnaval, um desses cristãos colocou um jet ski na mão de um adolescente e uma menininha de três anos morreu como consequência dessa estupidez em particular.
Já que o assunto são os cristãos, tanto os bons como o Malafaia, Garotinho e Bento 16, quanto os demais, gostaria de fazer uma homenagem aos cristãos do bravo estado americano da Virgínia, que condenaram todas as mulheres que desejarem ou precisarem fazer um aborto, a antes fazer uma sonografia invasiva. Sim, estimados leitores, estimadíssimas leitoras. Legisladores ultra cristãos da Virgínia querem submeter mulheres a uma invasão dos seus corpos, e de uma forma muito, muito invasiva.
A melhor resposta foi de uma mulher que sugeriu a eles passarem pelo mesmo procedimento, e, no caso de algum deles não ser mulher e ter dificuldades técnicas em cumprir a lei, bom, que improvisem como der, porque dá.
Eu gostaria de sugerir a adultos que dão jet skis para os filhos adolescentes que experimentem fazer a mesma coisa, utilizando não uma sonda de sonografia, mas o próprio jet ski. Talvez seja um pouco mais doloroso, mas nada tão doloroso quanto o efeito de um jet ski atingindo uma menininha de três anos que está brincando ali, na beira da praia, onde as criancinhas são mais felizes.
A humanidade é pródiga em demonstrações de estupidez adulta, que nem sempre, para nossa sorte, terminam em tragédias.
Eu sempre considerei jet skis ótimas representações do que temos de pior como espécie. Adicionar barulho e agitação a ambientes cheio de natureza e gente não é a melhor coisa que se pode fazer ou pensar. Na minha antiga casa de Porto Alegre, diante do lindo Guaíba, eu via gente montada nessas tranqueiras tentando inventar o que fazer com elas, já que tinham pago muito dinheiro por algo que basicamente anda pra lá e pra cá, e mais nada. Pior do que um bom jet ski, somente um bom banana boat, que também mata pessoas de tempos em tempos. Todas essas formas primitivas de ocupar espaços e matar o tempo de quem não sabe o que fazer com ele são assim mesmo, invasivas, como o tal exame que os cristãos virginianos querem impor às mulheres de lá.
Vejam se estou certo: estamos nós, pessoas de bem, em uma praia, sentados com nossa cerveja em uma mão, um bom Sydney Sheldon na outra, prontos pra desvendar os mistérios da grande literatura e passarmos as próximas horas em paz e felicidade. O que fazem os maus cristãos? Entram de automóvel pela praia, trazem seus cachorrinhos para morder quem passa e espalhar bicho de pé a todos, ou trazem seus trailers e seus jet skis para nos atormentar com seus movimentos sem sentido e ruído insuportável. Assim também caminha a humanidade.
O que acontece é que por vezes essa tolice básica é superada, como nos casos em que um adulto entrega o seu jet ski para o júnior mostrar o que sabe. E crianças que estão por perto se tornam vítimas em potencial.
O nosso mundo já é suficientemente lotado de sons e fúria, caros leitores. Não precisamos torná-lo ainda mais inamistoso do que já é. Esses sujeitos são os piores porque adoram comprar tudo que o dinheiro pode comprar, e adoram mostrar o que compraram para quem nunca pediu para ver. Não, não quero saber do seu jet ski; não, prefiro não conhecer a sua lancha com 150 HP assim tão de perto; não, prefiro não saber qual a potência do som da sua caranga despejando esse funkão pra cima da gente.
Os mesmos brasileiros que adoram demonstrar toda a sua indignação com os políticos adoram arrotar poder financeiro e impunidade na prática, não aceitando que existam radares escondidos, os únicos que fazem sentido, ou que alguém diga a eles que algo não pode, não para eles. Eles podem, eles querem, eles compraram, poxa.
"Comprei meu Tucson com a rua junto, e ele não reconhece faixas de segurança. Minha casa é o mundo, portanto você não tem direito a me dizer o que eu posso ou não posso, porque eu posso tudo. Saia da minha frente com o seu bom senso e noções de civilidade, porque eu tenho Master Card Platinum Plusquamultra, e não freio para ninguém".
Esse é o, digamos, espírito. E nele não cabem menininhas brincando na praia.
Aqui no meu bairro, na pracinha recheada de babás de branco, onde novos ricos mostram o que trouxeram de Miami ontem, um menininho ganhou uma moto elétrica e andava passeando com ela. Vou fazer a minha parte e dizer ao pai do menininho que não, essa não é uma boa idéia. Criancinhas de todos os tamanhos brincam por ali, e elas sim têm direito a uma praça só delas. Conhecendo os nossos ricos, esse pode ser o meu último ato sobre a terra. Na minha eventual ausência, peçam por favor ao irmão Malafaia para assumir a coluna. Ele sabe tudo que eu gostaria de dizer e nem sempre consigo, talvez por, diferentemente desses cristãos, ainda me sentir atrapalhado por escrúpulos.

Marcelo Carneiro da Cunha é escritor e jornalista. Escreveu o argumento do curta-metragem "O Branco", premiado em Berlim e outros importantes festivais. Entre outros, publicou o livro de contos "Simples" e o romance "O Nosso Juiz", pela editora Record. Acaba de escrever o romance "Depois do Sexo", que foi publicado em junho pela Record. Dois longas-metragens estão sendo produzidos a partir de seus romances "Insônia" e "Antes que o Mundo Acabe", publicados pela editora Projeto.

Nenhum comentário:

Postar um comentário