Posted: 18 Dec 2016 02:34 AM PST
Artigo no Alerta Total – www.alertatotal.net
Por Antonio Tabet
Fazia mais de três horas que Fernando, o oficial de Justiça, esperava para entregar uma notificação em frente a uma luxuosa mansão em Brasília. Num dia como outro qualquer, o servidor já teria desistido, mas o envelope que repousava no banco do carona ao lado ostentava o nome do Superior Tribunal Federal. E mais: dentro dele havia a interpelação mais importante que entregaria em todos os anos de vida profissional. Aquela que afastaria da presidência do Senado o político mais poderoso da República, Ralf Carvalho. Uma guinada no jogo de xadrez de Brasília, que mudaria para sempre o curso da História, as manchetes de todos os jornais e, claro, a autoestima de Fernando, que é um ser humano como todos nós.
Tanto que, depois de tanto tempo esperando no calor seco da capital federal, quando até a bateria do celular do servidor já pedia arrego, Fernando cogitou desistir. Era sexta-feira e ele só queria um chope. O rapaz só não foi embora porque foi graciosamente surpreendido pelo inconfundível carrão do senador entrando pelo portão aos 45 do segundo tempo. “É agora!”, pensou.
Fernando ajeitou a gravata — normalmente ele não usava, mas a ocasião pedia — saiu do carro, caminhou até a enorme porta da mansão e tocou a campainha. Nada. Tocou de novo. Pensou ter ouvido um barulho. Nada. Insistiu. Depois de intermináveis 6 minutos para quem já tinha esperado horas, a porta abriu. Era Guiomar, com idade para ser tia dele, vestindo um uniforme daqueles clássicos de doméstica de novela.
— Pois não?
— Bom dia, senhora. Eu sou oficial de Justiça e vim entregar uma notificação para o senador Ralf Carvalho.
— Ih, moço... O senador Ralf não está. É... É só com ele? — gaguejou Guiomar, como quem mente mal.
— A senhora pode checar de novo? É que eu estou parado aqui na frente já faz três horas e eu vi que ele acabou de entrar.
— Ih é, é?
— É. Inclusive o carro dele tá parado na garagem.
— Engraçado que eu não vi ele chegar...
— A senhora tá segurando o paletó dele na mão.
— Nossa Senhora! Esse aqui? — Guiomar entrou em pânico.
— Não... Isso aqui é... É... Do filho dele!
— O filho dele tem só 9 anos.
— Filha! Eu disse filha.
— A senhora disse “filho.”
— O senhor ouviu errado. Filha.
— É que o senador nem tem filha... Olha só, me ajuda, vai, dona. Eu só quero entregar esse envelope pra ele e ir beber meu chopinho em paz.
De repente, a porta da mansão abriu-se mais e, para surpresa de Fernando, uma voz esganiçada o interrompeu.
— Que que tá acontecendo aí, Guiomar?!?
Fernando estava boquiaberto. Era o senador Ralf, vestido de mulher, com uma peruca loura mal ajambrada, óculos escuros, alguma maquiagem e simulando o que julgava — equivocadamente — ser uma voz feminina.
— Ah! Meu paletó que eu tava procurando. Obrigado... Obrigada! — disse o senador para Guiomar.
— Senador? — perguntou o ainda incrédulo Fernando.
— Não. Sou a Pâmela. Filha dele.
— Mas o senador não tem filha.
— Tenho sim, né, Guiomar? A Pâmela! Eu.
— Tem sim senhor. A... Pâmela... — Guiomar não tirava os olhos do chão.
Os três ficaram em silêncio alguns segundos, e Fernando disse:
— Entendi. Bom... Desculpa o incômodo, dona “Pâmela”... Eu... Eu vou embora então e... se por um acaso o seu pai chegar... será que a senhorita pode me fazer a gentileza de...
De repente, como um gato, Fernando deu um bote e puxou a peruca do senador. Guiomar chegou a dar um gritinho, e o senador ainda tentou se esquivar, mas era tarde demais.
— Ahá!!! Pronto. Acabou a palhaçada, senador. Pode pegar a notificação aqui.
Fernando esticou a mão e pressionou o envelope contra aqueles seios (mal) improvisados. Uma bolinha de tênis chegou até a escapulir de dentro do top rosa.
— Pra quê? — respondeu um surpreendentemente tranquilo senador.
— Pra afastar o senhor do cargo.
— Querido... Você já tá trabalhando à toa.
— Como assim?
— Deixa eu te explicar: você tá me entregando essa notificação para eu perder o cargo, certo?
— Certo.
— E eu perderia meu cargo porque eu teria... Veja bem... Teriiiiiiiia desviado dinheiro público, certo?
— Certo.
— E eu teria desviado esse dinheiro público para, entre outras coisas, construir esta mansão incrível aqui, certo?
— Certo?
— Então... Aí eu perco o cargo, vou preso semana que vem e, no primeiro feriado, consigo um juiz qualquer de plantão pra transferir pra onde?
— Prisão domiciliar?
— Exatamente. Prisão domiciliar. Pra quê? Para eu viver nesta mansão incrível que eu teriiiiiia construído com dinheiro público. Ou seja, ciclos.
— Mas pelo menos o senhor não vai poder sair de casa.
— E você acha que eu consigo sair de casa, rapaz?
— Não consegue?
— Pffff... Se eu vou jantar fora, sou xingado... Piso num estádio, sou vaiado... Se ando na rua, apanho... Já aqui... Pô... Aqui tem piscina térmica, sauna a vapor, pay-per-view e o cacete. Tem até um campo de golfe com chopeira italiana ali atrás!
— Chopeira italiana, é?
— É! Tira o chope a um grau pra chegar na mesa com três e meio. Desce na garganta com seis no máximo. Nesse calorão é uma beleza. Quer dar uma olhada?
— É que... Como oficial de Justiça eu não sei se posso...
— Oficial de Justiça? Que oficial de Justiça? Não tô vendo nenhum oficial de Justiça aqui. Você tá vendo algum oficial de Justiça aqui, Guiomar?
— Não senhor! — prontamente respondeu Guiomar.
— Viu só? Ninguém tá vendo um oficial de Justiça aqui. Nós só estamos vendo o... Qual o seu nome?
— Fernando.
— A gente só tá vendo o Fernando, esse cara bacana que vai beber um chope gelado agora na pressão. Aliás, Guiomar, faz um petisquinho para a gente?
— Sim, senhor!
Guiomar saiu animada para a cozinha. Rendido, Fernando afrouxou a gravata enquanto via a senhora indo apressada preparar os petiscos e, como quem já tem intimidade para amenidades, comentou.
— Prestativa a sua empregada, hein, senador?
— Muito. Mas ela não é minha empregada, não. É ministra do STF.
Antônio Tabet é colunista de O Globo, onde o conto foi originalmente publicado em 17 de dezembro de 2016.
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