Repare bem ao redor. Maquiagem vencida. Retrato empoeirado. Bijuterias oxidadas. Louça de anteontem. Esmalte descascado. Copo com resto de café. As horas se esqueceram de seguir no cuco enguiçado. Por fora, o caos está posto, mas e aí dentro, quais os lixos que te carregam? Ou, quais são as quinquilharias colecionadas?
Não, não. Ninguém precisa de tanto entulho no coração. Perdas não passadas tornam-se pedras. Pedregulhos! Enormes! Tanto que interrompem a chegada de um novo ciclo. Blindam o olhar ao sol. A gente não enxerga nada além de uma montanha de lixo emocional abarrotado de um pretérito imperfeito. E mesmo assim, continuamos agarrados aos velhos sonhos falidos, tratando nossos entulhos como relíquias preciosas.
Eu sei. Muitas vezes nos sentimos desencorajados a desapegar. Parece mais forte que a gente. Nos conectamos tanto ao passado porque criamos sentimentos pendentes a ele. Sentimentos tão fortes que vira e mexe nos arremessam de volta à estação de onde partimos. Permanecemos na plataforma fixados à dor, à mágoa, a alguém ou a uma felicidade que ficou para trás. Regredimos. Sentamos em cima de nossos entulhos, feito criança teimosa a não aceitar que o brinquedo quebrou. Acreditamos que sim, será possível refazer tudo de novo se inventarmos um passado no qual seja provável dar outro destino ao que nos aconteceu. Mas olha, não dá! O trem já partiu faz tempo. Não precisa mais esperar aí sentada nessa estação, enquanto seu vestido encurta de hora em hora.
“A espera é uma tecedura, a gente cria presenças com materiais de ausência”, diz Mia Couto. A gente inventa o passado que quiser. Fia no tear as relações que convêm. A gente se costura na dor. Tudo tecido sem forro, sem fundo. Depois é solidão. Um novelo feito de ausências jamais será capaz de aquecer a realidade em dias frios. Só queria lembrar que existe vida além da espera. Colocar o pé na estrada é uma forma de estar mais próximo do bem que vem à frente. Coração não é terreno baldio, não o entulhe de ressentimentos. Do passado, carregue somente o necessário. Isso ajuda o pretérito a entender seu verdadeiro lugar no tempo.
Faça as malas! É chegada a hora de partir para a vida! Não se preocupe, há muitos encontros depois da despedida. Tome assento na poltrona, deixe o destino se orientar nos trilhos. As flores roxas, tulipas, girassóis, margaridinhas enfeitando a estação. Depois se vire, pela última vez, a espiar o passado que se distancia. Ele foi ficando longe. Ele foi ficando. Ele foi. Ele?
A vida é o seguinte: é seguinte.
Título tomado de empréstimo de Malachy McCourt. A frase está publicada no livro A Monk Swimming.
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