domingo, 2 de agosto de 2015
O médico Bernd Wollschlaeger, de 57 anos, rompeu com a família após descobrir o papel que seu pai Arthur Wollschlaeger, um comandante de tanque condecorado pelo ditador nazista Adolf Hitler, teve na Segunda Guerra (1939-1945). Após converter-se ao judaísmo, Wollschlaeger mudou-se em 1987 para Israel, onde adquiriu a cidadania israelense e serviu por dois anos no Exército como oficial médico. Um dos protagonistas do documentário "Fantasmas do Terceiro Reich", da brasileira Claudia Sobral, Wollschlaeger vive desde 1991 na Flórida, nos Estados Unidos. Veja seu depoimento: "Nasci em 1958 em Bamberg, no sul da Alemanha, onde aprendi muito cedo a importância da história por estar cercado por ela. Perguntava aos meus pais sobre seu passado, sobre meus avós, mas só se limitavam a dizer que houve uma guerra. Mas gradualmente comecei a colher duas versões diferentes. Da minha mãe, uma tcheca de etnia alemã, ouvia sobre o horror de ter sido desalojada de casa, de ter perdido tudo que lhe era caro. Do meu pai, ouvi as histórias de glória. Comandante de tanque, ele participou dos ataques à Polônia em 1939, à França em 1940 e à União Soviética em 1941. Um dia me mostrou a condecoração que recebeu de Hitler: a Cruz de Ferro. Assim, quando tinha 6, 7, 8 anos, meu pai era um herói de guerra e eu devia ter orgulho dele. As dúvidas surgiram entre meus 8 e 9 anos, porque havia algo curioso na nossa residência em Bamberg. Vivíamos de aluguel no primeiro andar de uma construção antiga. A proprietária, uma condessa com quem minha mãe me proibia de falar, morava no andar de cima. Na parede ao lado da escada que levava ao seu apartamento ficava o retrato de um militar também usando o quepe, a Cruz de Ferro. Meu pai referia-se a ele como "o traidor", e eu não entendia por que alguém que parecia com ele poderia ser ruim. Até que descobri que o retratado era Kant Claus von Stauffenberg, o coronel alemão que liderou a tentativa de assassinato contra Hitler em 20 de julho de 1944. E foi com sua viúva, Nina Stauffenberg, que aprendi mais tarde que houve uma Alemanha de ditadura e que houve pessoas que lutaram contra o sistema. Quando tinha 14 anos, nos ensinaram na escola que as Olimpíadas de Munique, em 1972, demonstrariam ao mundo uma nova Alemanha, e não a de 1936, quando Hitler usou os Jogos como propaganda nazista. Meus pais convidaram amigos para assistir à abertura. E, quando a equipe que trazia a estrela de Davi na bandeira entrou no estádio, toda o clima mudou. Meus pais pararam de falar, como se tivesse aparecido um fantasma. Dez dias depois, essa equipe foi feita refém por terroristas palestinos. E então o curso da minha vida mudou no dia seguinte ao fracasso do resgate, quando li nos jornais a manchete "Judeus mortos novamente na Alemanha". Na escola, tiveram de nos explicar sobre Auschwitz, a solução final, a morte de judeus como política de Estado.
Apesar de meu pai ser um cara muito durão, com quem era difícil falar por controlar a situação, confrontei-o: "Pai, o que sabe sobre o Holocausto?" Ele respondeu que isso era uma mentira, que tudo era propaganda comunista. No curso de vários anos, o abordei para tentar extrair a verdade. E, aos poucos, me disse. Aos poucos, ela apareceu. Em janeiro deste ano, um especialista militar me entregou uma mala do mecânico do tanque de meu pai. Ela estava cheia de rolos rasgados da Torá. Os parentes dele relataram que, na invasão da Polônia e da Rússia, os membros do regimento do meu pai destruíram vilas judaicas, mataram todos e saquearam. E usaram os rolos da Torá para envolver os motores dos veículos e evitar que perdessem calor no inverno. Então, meu pai não apenas soube do Holocausto: ele participou dele. Quando eu tinha 17, 18 anos, ele defendeu o Holocausto dizendo: "Foi necessário, porque alguém tinha de se livrar da sujeira". Durante todo esse processo, quanto menos meu pai estava interessado em falar sobre o assunto, mas me interessei em aprender sobre o judaísmo. E, quanto mais me aproximei dessa família de escolha, mais me distanciei da minha de origem. Entre os 19 até os 26, 27 anos, passei por uma mudança espiritual. Converti-me e me tornei judeu ainda na Alemanha, e isso foi um total rompimento com minha família. Tive de partir e imigrei para Israel em 1987. Deixei minha nacionalidade alemã para trás, me tornei israelense, deixei minha fé cristã para me tornar judeu, servi no Exército israelense. Me desconectei totalmente do meu antigo eu para manter a sanidade. Minha jornada foi resolver meu próprio conflito, me reconciliar comigo mesmo, entender como posso ser alemão, ser filho de um pai que fez isso? E como ser eu mesmo, normal? Foi uma redenção pessoal. Comecei essa jornada me sentindo culpado. No fim, me tornei um judeu por convicção. Não posso limpar o passado de meu pai ou desfazer o que aconteceu. Hoje não me sinto mais culpado, mas sinto que, como filho dele, sou responsável. Que tenho de carregar essa vergonha. Mas na minha vida fiz e faço tudo o que posso para contribuir para essa redenção. Meu pai nunca foi capaz de sentir remorso. Antes de morrer, incluiu no seu último testamento que eu nunca deveria visitar sua sepultura, não deveria comparecer a seu funeral, me deserdou. Obviamente, não fui ao seu enterro. Estava em Israel quando morreu. Mas visitei seu túmulo 20 anos depois, com meu filho. A parte irônica é que o túmulo conjunto dos meus pais fica exatamente do lado do muro que separa o cemitério cristão, de Bamberg, do cemitério judaico. Quando você olha a partir do túmulo dos meus pais em direção a esse muro, vê do outro lado as lápides judaicas. Olhando para aquilo, disse ao meu filho: "Essa é lição que posso te ensinar: a história sempre projetará sua sombra, mesmo na morte. Por isso é melhor lidar com ela estando vivo, saindo da sombra e aprendendo suas lições". Meu pai nunca fez isso. Literalmente, ele repousa sob a sombra da história por toda a eternidade.
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