O Estado de S. Paulo - 25/01
O grande acontecimento a desafiar explicações no início deste ano já tão repleto de temores chama-se Joaquim Levy.
Ninguém poderia antecipar que a presidente reeleita, sabidamente teimosa, irascível e centralizadora, além de (supostamente) adepta de teorias econômicas de pé quebrado, traria para o Ministério da Fazenda um Ph.D pela Universidade de Chicago, recrutado em um dos grandes bancos e de persuasão econômica contrária à sua. Parece um gabinete de coalizão, onde a Fazenda, o principal ministério, foi entregue à oposição, e sem contrapartida, um absurdo.
Enquanto Joaquim Levy circula no Fórum Econômico Mundial arrancando elogios e suspiros, inclusive de alívio - Christine Lagarde, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) o definiu, em tons românticos, como um "Davos Man" (como se tivesse nascido para aquilo) -, Dilma Rousseff foi à posse de Evo Morales e posou para uma foto com o braço erguido e punho cerrado, ela e outros líderes bolivarianos, sob a manchete (uma fala de Evo) "Aqui os Chicago Boys não mandam".
Não é possível imaginar sinais mais confusos. O que quer Dilma Rousseff?
Depois de duríssima campanha, infinitos debates, programas e exposições, onde todas as dúvidas deveriam ter sido eliminadas, verifica-se que não sabemos coisa alguma sobre o que quer a presidente reeleita.
Como confiar em líderes que fazem o contrário do que prometem?
Enquanto a perplexidade domina os corações do empresariado, em pouco mais de 20 dias de mandato, Joaquim Levy já melhorou as contas públicas em algo perto de R$ 40 bilhões, cerca de metade da estimativa de esforço fiscal necessário para alcançar a meta de superávit primário anunciada para 2015, e sem maior esforço. Não é uma meta ambiciosa (1,2% do Produto Interno Bruto), talvez mesmo dentro da zona de conforto, como é conveniente para quem precisa fazer previsões (orçamentos) e não quer falhar. Mas, em compensação, a equipe anterior deixou bombas escondidas em todos os cantos, ou seja, a herança maldita desses últimos anos de heterodoxia irresponsável era pior do que se imaginava.
Joaquim Levy prossegue arrumando a casa com surpreendente desenvoltura, plenamente atestada pela irritação que provoca nos apoiadores do ex-ministro Guido Mantega e do choque heterodoxo que impingiu ao Brasil nos últimos anos. É reconfortante ver agastados os amigos da inflação e acusando a presidente de "submissão ao mercado".
'Mercado'. Os amigos da inflação adoram implicar com o "mercado", pois assim imaginam antagonizar o "capital financeiro" e os bancos, quando na verdade estão tentando desautorizar "o que se diz por aí", ou a "rádio corredor", vozes que não se pode calar. Já estamos fartos de saber que o "mercado" é uma manifestação da opinião pública especializada, e uma expressão bem razoável do sentimento empresarial e das expectativas dos agentes econômicos numa economia de mercado moderna como o Brasil. E o mercado tomou horror de Guido Mantega e seus apoiadores, e por bons motivos.
A ideia de um antagonismo entre o "mercado" e o bem comum é uma das múltiplas arapucas retóricas de que se servem os marqueteiros para iludir. Foi com esse espírito que a presidente acusou a oposição de querer entregar o Banco Central aos bancos, do que resultaria subtrair comida da mesa do trabalhador.
Depois de vários aumentos nos juros, nos impostos, nas passagens de ônibus e na luz, não há como afastar o ilusionismo, bem capturado nesses versos de Caetano Veloso:
"Você diz a verdade
A verdade é seu dom de iludir
Como pode querer
Que a mulher vá viver sem mentir".
Antes que alguém se aborreça, não há uma questão de gênero aqui, trata-se de notar que no terreno eleitoral, como no do amor, a mentira pode ser, usando a observação de Quincas Borba, tão natural quanto a transpiração. Nesse terreno do emocional, onde prevalecem as ambiguidades, a manipulação de versões é quase um imperativo. Visto que talvez nem tudo seja falso, diz Fernando Pessoa, que nada nos cure do prazer de mentir.
Mas, dito isso, o que quer afinal Dilma Rousseff?
Só é possível refletir sobre o conforto proporcionado pela ambiguidade. É como se Dilma Rousseff vivesse uma variante da trama de Kagemusha, premiado filme homônimo de Akira Kurosawa de 1980.
O velho e respeitado líder guerreiro Shingen sabia que o poder do mito podia ser maior do que as habilidades reais de uma líder; ele já tinha chegado a essa categoria antes mesmo de encontrar seu destino, numa noite calma, quando foi discretamente ao campo de batalha ouvir uma misteriosa flauta e foi ferido mortalmente por um franco atirador. Enquanto agonizava, determinou que sua morte fosse mantida em segredo por três anos ao longo dos quais um sósia fingiria estar desempenhando suas funções, inclusive com mais pompa do que o habitual.
Mudança na direção. É claro que a ideia serve perfeitamente para um líder constrangido a reconhecer que fez tudo errado e teve de mudar a direção das coisas em seu segundo mandato. O esforço de iludir consiste em não reconhecer os erros, e assim, tornar-se uma sósia de si mesma, e manter oculta a original, a presidente heterodoxa e intervencionista que, todavia, não sabemos se continua viva.
Para evitar explicações embaraçosas, a sósia, na verdade uma figura heterônima, terá de se esforçar para permanecer todo o tempo que puder no terreno do simbólico, ou das abobrinhas, enquanto os técnicos tocam os assuntos da economia de forma completamente diferente do que antes. Como se nada tivesse acontecido.
Em algum momento posterior, com a economia andando bem, um roteirista experiente seria chamado para completar o enredo de forma positiva e engenhosa, a depender de se deslindar o mistério da economia. É cedo para especular. Só é claro que a ambiguidade é o melhor caminho, pois o silêncio contrito, acompanhado de um ar inteligente, diante de um interlocutor angustiado por uma resposta, é uma receita infalível para a consagração. Em silêncio, mesmo sem saber o que fazer, a liderança terá sempre o benefício de ver interpretações sobre suas ações que pressupõem uma inteligência muito maior do que a que realmente existe.
Não é preciso pensar muito, como indicam os versos de um outro heterônimo, Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos:
"O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso".
O grande acontecimento a desafiar explicações no início deste ano já tão repleto de temores chama-se Joaquim Levy.
Ninguém poderia antecipar que a presidente reeleita, sabidamente teimosa, irascível e centralizadora, além de (supostamente) adepta de teorias econômicas de pé quebrado, traria para o Ministério da Fazenda um Ph.D pela Universidade de Chicago, recrutado em um dos grandes bancos e de persuasão econômica contrária à sua. Parece um gabinete de coalizão, onde a Fazenda, o principal ministério, foi entregue à oposição, e sem contrapartida, um absurdo.
Enquanto Joaquim Levy circula no Fórum Econômico Mundial arrancando elogios e suspiros, inclusive de alívio - Christine Lagarde, diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) o definiu, em tons românticos, como um "Davos Man" (como se tivesse nascido para aquilo) -, Dilma Rousseff foi à posse de Evo Morales e posou para uma foto com o braço erguido e punho cerrado, ela e outros líderes bolivarianos, sob a manchete (uma fala de Evo) "Aqui os Chicago Boys não mandam".
Não é possível imaginar sinais mais confusos. O que quer Dilma Rousseff?
Depois de duríssima campanha, infinitos debates, programas e exposições, onde todas as dúvidas deveriam ter sido eliminadas, verifica-se que não sabemos coisa alguma sobre o que quer a presidente reeleita.
Como confiar em líderes que fazem o contrário do que prometem?
Enquanto a perplexidade domina os corações do empresariado, em pouco mais de 20 dias de mandato, Joaquim Levy já melhorou as contas públicas em algo perto de R$ 40 bilhões, cerca de metade da estimativa de esforço fiscal necessário para alcançar a meta de superávit primário anunciada para 2015, e sem maior esforço. Não é uma meta ambiciosa (1,2% do Produto Interno Bruto), talvez mesmo dentro da zona de conforto, como é conveniente para quem precisa fazer previsões (orçamentos) e não quer falhar. Mas, em compensação, a equipe anterior deixou bombas escondidas em todos os cantos, ou seja, a herança maldita desses últimos anos de heterodoxia irresponsável era pior do que se imaginava.
Joaquim Levy prossegue arrumando a casa com surpreendente desenvoltura, plenamente atestada pela irritação que provoca nos apoiadores do ex-ministro Guido Mantega e do choque heterodoxo que impingiu ao Brasil nos últimos anos. É reconfortante ver agastados os amigos da inflação e acusando a presidente de "submissão ao mercado".
'Mercado'. Os amigos da inflação adoram implicar com o "mercado", pois assim imaginam antagonizar o "capital financeiro" e os bancos, quando na verdade estão tentando desautorizar "o que se diz por aí", ou a "rádio corredor", vozes que não se pode calar. Já estamos fartos de saber que o "mercado" é uma manifestação da opinião pública especializada, e uma expressão bem razoável do sentimento empresarial e das expectativas dos agentes econômicos numa economia de mercado moderna como o Brasil. E o mercado tomou horror de Guido Mantega e seus apoiadores, e por bons motivos.
A ideia de um antagonismo entre o "mercado" e o bem comum é uma das múltiplas arapucas retóricas de que se servem os marqueteiros para iludir. Foi com esse espírito que a presidente acusou a oposição de querer entregar o Banco Central aos bancos, do que resultaria subtrair comida da mesa do trabalhador.
Depois de vários aumentos nos juros, nos impostos, nas passagens de ônibus e na luz, não há como afastar o ilusionismo, bem capturado nesses versos de Caetano Veloso:
"Você diz a verdade
A verdade é seu dom de iludir
Como pode querer
Que a mulher vá viver sem mentir".
Antes que alguém se aborreça, não há uma questão de gênero aqui, trata-se de notar que no terreno eleitoral, como no do amor, a mentira pode ser, usando a observação de Quincas Borba, tão natural quanto a transpiração. Nesse terreno do emocional, onde prevalecem as ambiguidades, a manipulação de versões é quase um imperativo. Visto que talvez nem tudo seja falso, diz Fernando Pessoa, que nada nos cure do prazer de mentir.
Mas, dito isso, o que quer afinal Dilma Rousseff?
Só é possível refletir sobre o conforto proporcionado pela ambiguidade. É como se Dilma Rousseff vivesse uma variante da trama de Kagemusha, premiado filme homônimo de Akira Kurosawa de 1980.
O velho e respeitado líder guerreiro Shingen sabia que o poder do mito podia ser maior do que as habilidades reais de uma líder; ele já tinha chegado a essa categoria antes mesmo de encontrar seu destino, numa noite calma, quando foi discretamente ao campo de batalha ouvir uma misteriosa flauta e foi ferido mortalmente por um franco atirador. Enquanto agonizava, determinou que sua morte fosse mantida em segredo por três anos ao longo dos quais um sósia fingiria estar desempenhando suas funções, inclusive com mais pompa do que o habitual.
Mudança na direção. É claro que a ideia serve perfeitamente para um líder constrangido a reconhecer que fez tudo errado e teve de mudar a direção das coisas em seu segundo mandato. O esforço de iludir consiste em não reconhecer os erros, e assim, tornar-se uma sósia de si mesma, e manter oculta a original, a presidente heterodoxa e intervencionista que, todavia, não sabemos se continua viva.
Para evitar explicações embaraçosas, a sósia, na verdade uma figura heterônima, terá de se esforçar para permanecer todo o tempo que puder no terreno do simbólico, ou das abobrinhas, enquanto os técnicos tocam os assuntos da economia de forma completamente diferente do que antes. Como se nada tivesse acontecido.
Em algum momento posterior, com a economia andando bem, um roteirista experiente seria chamado para completar o enredo de forma positiva e engenhosa, a depender de se deslindar o mistério da economia. É cedo para especular. Só é claro que a ambiguidade é o melhor caminho, pois o silêncio contrito, acompanhado de um ar inteligente, diante de um interlocutor angustiado por uma resposta, é uma receita infalível para a consagração. Em silêncio, mesmo sem saber o que fazer, a liderança terá sempre o benefício de ver interpretações sobre suas ações que pressupõem uma inteligência muito maior do que a que realmente existe.
Não é preciso pensar muito, como indicam os versos de um outro heterônimo, Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos:
"O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso".
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