domingo, 28 de setembro de 2014

Os candidatos que "farão pela saúde, pela educação e pelos idosos"


Promessas genéricas não acabam com as filas do SUS. De onde sairá o dinheiro para financiar os serviços com que os brasileiros sonham?

CRISTIANE SEGATTO
29/08/2014 16h18 - Atualizado em 29/08/2014 16h59
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Poucos hits da internet traduzem tão bem o vazio de ideias e o deboche do horário eleitoral gratuito quanto o vídeo “Programa Político”, estrelado pelo ator Fábio Porchat, no canal Porta dos Fundos. É uma maravilha:

“Vote naquele que fará pela saúde, pela educação, pelos idosos”, diz o candidato. “Ah, pelos idosos...” E cai na gargalhada. Não vou contar o final para não estragar a surpresa, caso alguém ainda não conheça esse retrato perspicaz dos maus hábitos da nossa política.
 
Subestimar a inteligência do eleitor é uma prática disseminada. Não sei até quando ela vai funcionar. Mesmo com os imensos déficits de educação do Brasil, hoje qualquer pessoa com acesso à internet pode confrontar afirmações levianas e promessas sem pé nem cabeça com fatos e números. E quem tem disposição e habilidades suficientes para consultar as fontes corretas pode facilmente se transformar num multiplicador de conhecimento por meio das redes sociais. 
 
Sucessivas pesquisas demonstram que a saúde é a maior preocupação dos cidadãos. O que me intriga, eleição após eleição, é a falta de coragem dos candidatos de enfrentar as discussões duras e objetivas sobre o financiamento do sistema de saúde. Ele não vai melhorar enquanto os brasileiros continuarem caindo no conto das medidas emergenciais e eleitoreiras.
 
O SUS foi criado em 1988 com a melhor das intenções. Se funcionasse como o previsto na Constituição, seria um belíssimo instrumento de justiça social. Para ser justo e universal, para oferecer tudo (todo e qualquer tipo de tratamento) para toda a população (dos mais pobres aos mais ricos), o SUS precisa receber mais dinheiro. E, ainda assim, talvez não fosse possível oferecer todas as novas e caríssimas soluções criadas pela indústria farmacêutica. Nenhum país do mundo consegue fazer isso.

Os cerca de 9% do PIB que o Brasil aplica em saúde (somando-se os recursos públicos e privados) não sustentam o sistema imaginado em 1988. Como resolver a equação? Nesta eleição, ressurgiu a promessa de aplicar em saúde 10% do orçamento da União.
Isso é defendido por muitos especialistas desde os anos 80. É uma ideia justificável. O gasto público do país por habitante (US$ 474, segundo dados de 2010 reunidos pela OMS) é inferior ao gasto da Argentina (US$ 851), do Chile (US$ 562), da França US$ 3.075) e do Reino Unido (US$ 2.857).

Adoraria que o aumento do investimento em saúde pelo governo federal virasse realidade, mas é o tipo de promessa que tem grandes chances de ficar pelo caminho. Ela só poderia acontecer se houvesse um crescimento econômico espetacular – algo distante da realidade brasileira.
 
Os candidatos que fazem essa promessa precisam dizer com todas as letras como pretendem fazer isso. Vão aumentar impostos? Tirar dinheiro de outros ministérios? A discussão não deve ficar só no dinheiro. O que vão fazer para melhorar a gestão do SUS?
 
Há medidas impopulares no horizonte, como limitar o atendimento público a determinadas faixas de renda? Garantir o acesso a um determinado pacote de programas, tratamentos e drogas -- e só a eles? O que pretendem fazer para reduzir as ações judiciais de cidadãos que exigem todo e qualquer recurso de saúde – independentemente do preço e de estar ou não disponível no SUS?
 
Ninguém é capaz de assumir o ônus político de dizer que medidas impopulares podem ser necessárias para tornar o SUS verdadeiramente justo e universal. Sobra emoção e falta racionalidade quando se discute os rumos da saúde.

Se queremos um SUS melhor, precisamos nos armar de calculadoras. Fazer contas, mergulhar em planilhas, cobrar resultados e desprezar os políticos que só dizem generalidades.
 
São muitas as medidas necessárias para melhorar a assistência à saúde. Uma delas é garantir a correta distribuição dos recursos públicos entre as regiões. Um bom começo é investir na construção de um mapa das reais necessidades de cada região. Isso permitirá que o investimento seja feito de forma correta, na área que mais precisa dela.

Só com organização de alto nível é possível conter desperdício e transformar dinheiro em qualidade de vida. Em alguns estados do Nordeste, por exemplo, o número de mamógrafos disponíveis no SUS encontra-se acima do parâmetro adequado. Mesmo assim, a quantidade de mamografias realizadas está abaixo do esperado. Como isso é possível?

“Muitas mulheres faltam ao exame agendado porque não têm dinheiro para pagar o transporte”, diz o médico David Souza, professor de gestão em saúde do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
 
Não há dúvida de que os recursos da saúde são escassos, mas a falta de racionalidade nos três níveis de gestão (governo federal, estados e municípios) produz desperdício sem melhorar a vida das pessoas. Racionalizar, segundo a definição de David Souza, significa o seguinte:
• Fazer um diagnóstico preciso das necessidades de saúde da população
• Construir protocolos de conduta que permitam oferecer o cuidado necessário prioritariamente a quem mais precisa dele
• Regular o acesso a serviços e tratamentos com base nesses protocolos
• Capacitar os profissionais das redes de saúde para que eles possam fazer uma boa gestão dos recursos disponíveis
• Monitorar regularmente a efetividade de todo o processo de regulação
 
Hospital do Subúrbio, em Salvador (BA) (Foto: Márcio Lima/ÉPOCA)
“Todo médico precisa saber que os recursos são limitados. Isso vale para qualquer sistema de saúde do mundo”, diz Souza. “O exame que ele pede para um paciente faltará a outro”. Por isso, é fundamental que a solicitação seja feita com base em critérios claros e objetivos.
Faremos, daremos, construiremos são os verbos mais usados pelos candidatos quando se referem à saúde. Quem for sincero o suficiente para assumir as mudanças impopulares e necessárias para reorganizar o SUS perde a eleição.
 
Enquanto os brasileiros não estiverem preparados para ouvir as verdades duras e valorizar os políticos que as defendem, o sistema de saúde vai continuar na mesma. Assim como a balela dos candidatos que “farão pela saúde, pela educação e pelos idosos”.
  
Que o voto consciente traga um futuro melhor e mais saudável. Com esse texto, me despeço e entro em férias. A coluna volta a ser publicada em outubro. Até lá e boa eleição para todos nós!
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras)

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