O que vemos não são apenas assaltantes armados. São homicidas que saem para roubar
RUTH DE AQUINO
21/07/2014 07h00 - Atualizado em 21/07/2014 08h14
Um tiro na cabeça, à queima-roupa, na hora do almoço, sob um sol deslumbrante de inverno, num dos bairros mais nobres e bucólicos da Zona Sul carioca, a Gávea, chocou e enlutou a elite do Rio de Janeiro. Sepultou-se ali a ilusória sensação de segurança criada pelo policiamento ostensivo na Copa, com soldados camuflados a cada esquina.
Maria Cristina Bittencourt Mascarenhas, 66 anos, conhecida por todos como Tintim, seu apelido de infância, acabara de sacar R$ 13 mil no banco para pagar a seus funcionários. Foi vítima de mais uma “saidinha de banco”, expressão quase terna que não traduz a covardia do crime, uma praga no Brasil. Tintim era sócia e anfitriã de um bistrô tradicional e simpático, o Guimas, fundado por duas famílias em 1981, que mistura as cozinhas francesa, portuguesa e brasileira. Ali sempre se comeu bem sobre toalhas quadriculadas, cobertas por papéis brancos descartáveis, onde crianças e adultos desenham, com lápis de cera coloridos, algo para alimentar o papo.
Dois homens numa moto a atacaram no curto caminho para o restaurante, um com capacete, o outro sem. Um chegou por trás, passou o braço pelo pescoço dela e gritou “passa a bolsa”. Tintim, mãe de três filhas e avó, querida na rua pelo sorriso e pela gentileza, segurou a bolsa por instinto e foi executada, com uma bala na têmpora. O assassino pegou o dinheiro, fugiu com o comparsa na moto. A vítima ficou ali, morta na poça de sangue, junto a botecos onde muita gente comia e bebia no ambiente festivo que tanto encantou os gringos. Uma testemunha disse que tudo durou um minuto.
Tintim parara para experimentar uma saia na barraca de um ambulante, pois assim é a comunidade da Gávea, um bairro chique alternativo, muito verde, com comércio misto e casas ainda antigas, mais procurado por quem busca tranquilidade e qualidade de vida, não ostentação. O bairro abriga a PUC, universidade católica, o Jockey Club, escolas para pobres e ricos, cursos de balé e ioga. É caminho para a favela da Rocinha.
Se fosse apenas uma tragédia isolada e pontual da boemia carioca, o assassinato de Tintim não estaria aqui nesta coluna. A violência de bandidos ou da polícia invade todos os grandes centros urbanos e não escolhe classes sociais. Está associada a impunidade, corrupção, abuso de poder, disputa por pontos de droga e desrespeito à vida. Aterroriza os pacíficos e honestos.
Pais e mães não conseguem criar filhos sem paranoia. Há quem apele a estratégias de guerrilha. No dia em que Tintim foi assassinada, ouvi uma jovem contar seu método para escapar ilesa de um eventual assalto no trânsito: “Minha bolsa que fica à vista é toda ‘fake’. É uma Vuitton falsificada, meus documentos são falsos, com nomes e endereços falsos, chaves falsas, celular que não funciona e mais uns R$ 50 e uns US$ 10 para o assaltante achar que se deu bem”. A bolsa verdadeira fica escondida. É uma história real. E faz todo sentido. Um sentido escabroso.
O que vemos não são simples assaltantes armados. São homicidas que saem para roubar. Poderiam ter dado um soco em Tintim, poderiam tê-la desacordado. Mas não. Deram um tiro para matar. Como fazem ao roubar um celular, uma bicicleta ou um carro – e a vítima, por medo ou susto, atrapalha por segundos a ação.
O “latrocínio” (assalto seguido de morte) é coisa nossa, quase não acontece em países civilizados. Cerca de 60 mil brasileiros são mortos por ano no país. Milhares de homicídios não são sequer registrados, por falta de confiança na investigação, por medo de vingança de gangues ou da PM. Nas estatísticas disponíveis, 164 pessoas são mortas por dia no Brasil. É como se um avião da Malaysia Airlines, com 298 pessoas a bordo, fosse abatido a cada 43 horas, por um míssil chamado subdesenvolvimento. Mata-se no Brasil, em 38 horas, o equivalente aos 260 palestinos mortos em 11 dias de conflito com Israel (até a última sexta-feira). Se o que vivemos não é uma guerra civil, o que será? Hecatombe social?
Somos reféns, podemos não chegar vivos em casa e sabemos o risco de perder alguém querido. Por isso, nos tornamos piores, mais agressivos ou medrosos. Há uma tendência a culpar as vítimas. “Como assim sacar R$ 13 mil do banco? Nem de dia dá para fazer isso.” “Como assim segurar a bolsa? Todo mundo sabe que não dá para reagir, entrega tudo logo.” É horrível. É como culpar pelo estupro a moça que ostentou as coxas com uma saia curta.
Houve um tempo, no Brasil, em que o verbo “reagir” significava outra coisa. Gritar por socorro. Tentar bater no assaltante ou ameaçar o bandido. Hoje, se o rapaz fugir de bicicleta, se a moça esconder rápido o celular na mochila, se o homem acelerar o carro, se a mulher segurar a bolsa, pronto. “Reagiram”, todos. Perderam a vida. Isso é barbárie, uma sociedade sem educação, sem humanidade, com total desprezo a leis que existem para não ser cumpridas.
Maria Cristina Bittencourt Mascarenhas, 66 anos, conhecida por todos como Tintim, seu apelido de infância, acabara de sacar R$ 13 mil no banco para pagar a seus funcionários. Foi vítima de mais uma “saidinha de banco”, expressão quase terna que não traduz a covardia do crime, uma praga no Brasil. Tintim era sócia e anfitriã de um bistrô tradicional e simpático, o Guimas, fundado por duas famílias em 1981, que mistura as cozinhas francesa, portuguesa e brasileira. Ali sempre se comeu bem sobre toalhas quadriculadas, cobertas por papéis brancos descartáveis, onde crianças e adultos desenham, com lápis de cera coloridos, algo para alimentar o papo.
Dois homens numa moto a atacaram no curto caminho para o restaurante, um com capacete, o outro sem. Um chegou por trás, passou o braço pelo pescoço dela e gritou “passa a bolsa”. Tintim, mãe de três filhas e avó, querida na rua pelo sorriso e pela gentileza, segurou a bolsa por instinto e foi executada, com uma bala na têmpora. O assassino pegou o dinheiro, fugiu com o comparsa na moto. A vítima ficou ali, morta na poça de sangue, junto a botecos onde muita gente comia e bebia no ambiente festivo que tanto encantou os gringos. Uma testemunha disse que tudo durou um minuto.
Tintim parara para experimentar uma saia na barraca de um ambulante, pois assim é a comunidade da Gávea, um bairro chique alternativo, muito verde, com comércio misto e casas ainda antigas, mais procurado por quem busca tranquilidade e qualidade de vida, não ostentação. O bairro abriga a PUC, universidade católica, o Jockey Club, escolas para pobres e ricos, cursos de balé e ioga. É caminho para a favela da Rocinha.
Se fosse apenas uma tragédia isolada e pontual da boemia carioca, o assassinato de Tintim não estaria aqui nesta coluna. A violência de bandidos ou da polícia invade todos os grandes centros urbanos e não escolhe classes sociais. Está associada a impunidade, corrupção, abuso de poder, disputa por pontos de droga e desrespeito à vida. Aterroriza os pacíficos e honestos.
Pais e mães não conseguem criar filhos sem paranoia. Há quem apele a estratégias de guerrilha. No dia em que Tintim foi assassinada, ouvi uma jovem contar seu método para escapar ilesa de um eventual assalto no trânsito: “Minha bolsa que fica à vista é toda ‘fake’. É uma Vuitton falsificada, meus documentos são falsos, com nomes e endereços falsos, chaves falsas, celular que não funciona e mais uns R$ 50 e uns US$ 10 para o assaltante achar que se deu bem”. A bolsa verdadeira fica escondida. É uma história real. E faz todo sentido. Um sentido escabroso.
O que vemos não são simples assaltantes armados. São homicidas que saem para roubar. Poderiam ter dado um soco em Tintim, poderiam tê-la desacordado. Mas não. Deram um tiro para matar. Como fazem ao roubar um celular, uma bicicleta ou um carro – e a vítima, por medo ou susto, atrapalha por segundos a ação.
O “latrocínio” (assalto seguido de morte) é coisa nossa, quase não acontece em países civilizados. Cerca de 60 mil brasileiros são mortos por ano no país. Milhares de homicídios não são sequer registrados, por falta de confiança na investigação, por medo de vingança de gangues ou da PM. Nas estatísticas disponíveis, 164 pessoas são mortas por dia no Brasil. É como se um avião da Malaysia Airlines, com 298 pessoas a bordo, fosse abatido a cada 43 horas, por um míssil chamado subdesenvolvimento. Mata-se no Brasil, em 38 horas, o equivalente aos 260 palestinos mortos em 11 dias de conflito com Israel (até a última sexta-feira). Se o que vivemos não é uma guerra civil, o que será? Hecatombe social?
Somos reféns, podemos não chegar vivos em casa e sabemos o risco de perder alguém querido. Por isso, nos tornamos piores, mais agressivos ou medrosos. Há uma tendência a culpar as vítimas. “Como assim sacar R$ 13 mil do banco? Nem de dia dá para fazer isso.” “Como assim segurar a bolsa? Todo mundo sabe que não dá para reagir, entrega tudo logo.” É horrível. É como culpar pelo estupro a moça que ostentou as coxas com uma saia curta.
Houve um tempo, no Brasil, em que o verbo “reagir” significava outra coisa. Gritar por socorro. Tentar bater no assaltante ou ameaçar o bandido. Hoje, se o rapaz fugir de bicicleta, se a moça esconder rápido o celular na mochila, se o homem acelerar o carro, se a mulher segurar a bolsa, pronto. “Reagiram”, todos. Perderam a vida. Isso é barbárie, uma sociedade sem educação, sem humanidade, com total desprezo a leis que existem para não ser cumpridas.
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