terça-feira, 1 de julho de 2014

A falsa inocência


É burrice proibir a propaganda para crianças. Elas não devem ser afastadas 
do mundo real

WALCYR CARRASCO
15/04/2014 07h00 - Atualizado em 15/04/2014 09h13

Quando eu era menininho, mais ou menos aos 7 anos de idade, um colega me ofereceu um relógio no recreio. O preço era baixíssimo, 1 ou 2 cruzeiros na época. Menos que um sanduíche. Comprei. Cheguei em casa feliz com a nova aquisição. Meus pais examinaram o relógio e concluíram:

– É impossível custar só isso. Aí tem alguma coisa errada.

No dia seguinte, em lágrimas, tive de levar o relógio de volta e entregar à diretora da escola, com quem minha mãe falara pessoalmente. Não deu outra: era roubado. Eu chorava tanto pela perda do relógio como do dinheiro. Foi uma lição sobre valores, proporcionada, paradoxalmente, pelo contato com meu coleguinha larápio. Mas não é bom aprender a lidar com gente desonesta?
As lições da minha infância foram fundamentais. Me espanto quando grupos que pretendem defender a criança fazem o inverso: impedir que vivam experiências que contribuam para a formação de valores. Acho uma burrice a recente resolução do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente, que proíbe a propaganda de produtos para a infância e adolescência, com força de lei. Certamente, quem compõe o órgão ligado à Presidência tem as melhores intenções. Mas age como se a criança devesse ser isolada de toda e qualquer experiência, inclusive do desejo de consumo. Fui um menino de família humilde. Inúmeras vezes pedi coisas impossíveis a meus pais. Ouvia “nãos” e aprendi a conviver com as limitações financeiras de minha família. Nem todas as conversas eram calmas. Fui um menino que batia o pé. E daí? A resolução do órgão governamental, assim como outros projetos de lei e ONGs, retira a educação dos filhos das mãos dos pais. Passa a ser uma decisão do Estado, que passa a controlar até suas pequenas ambições e a possibilidade de debate familiar. Desculpem, já não se viu isso antes, em Estados totalitários?

Colocar uma cúpula em torno das crianças é um falso pedagogismo. O grande teórico da educação Jean Piaget afirma que a criança deve construir o conhecimento. Para construir, são necessários elementos da realidade. Comecei falando de publicidade, porque é um fato recente. Mas o que mais assusta os bem-intencionados é a sexualidade. A educação sexual tornou-se uma lição ginecológica. Uma amiga tem dois filhos gêmeos e uma menina, mais velha. Depois de se preparar, conversar com uma pedagoga e tudo o mais, preparou-se para o grande dia. Sentou-se com os três e contou tudo sobre o ato e o nascimento dos bebês. Veio a pergunta fatal, da menina:

– Mamãe, você já fez?

Ela respirou profundamente e respondeu:

– Sim, já fiz com seu pai.

A menina sorriu.

– Então, você teve sorte, só teve de fazer duas vezes para ter três filhos!
A mãe ficou sem resposta. Eu disse:

– Agora você tem um problema. Terá de explicar a sua filha que não é uma obrigação horrível. Mas que é bom, só que ela não deve fazer com todos os coleguinhas da escola.

A teoria esqueceu o principal: o amor. Uma criança não tem de ser tão bem informada quanto um médico. Mas entender um tema tão complexo por meio dos sentimentos. Adolescentes são tão expostos ao sexo – e hoje cada vez mais cedo –, então é bom que saibam do que se trata. Minha avó paterna, Rosa, se casou aos 13 anos com meu avô Ginez, já nos 20. Passaram mais de 50 anos juntos. Sinceramente, não posso dizer que minha avó fosse oprimida. Era brava, e quem comandava a casa era ela. Era comum que adolescentes se casassem. Basta lembrar nossos avós ou bisavós. Eu mesmo já pensava em sexo bem cedo. Lia os romances de Jorge Amado aos 12 anos e, desculpem, não era por paixão literária, mas pela sensua­lidade que transbordava em cada página. Os bem-intencionados que tentam afastar as crianças do mundo real, que fazem exigências sobre o que se pode dizer numa novela, nos livros adotados em escolas, na propaganda, não se lembram da própria infância? Pensavam em sexo, é claro. Curiosidade é parte da natureza.

Ainda bem que existem os contos de fadas. Neles, ainda não tiveram coragem de intervir. João e Maria são abandonados pelos pais na floresta. Salvam-se assando a bruxa no forno e pegando a fortuna dela, quando, então, são recebidos pelos pais, felizes. Não é um exemplo de vida, mas ajuda a criança a conviver com seus próprios sentimentos de rejeição e violência. Estabelece uma ponte com o mundo conturbado que, mais tarde, será preciso enfrentar. 

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