quinta-feira, 12 de junho de 2014

E agora, o que acontece na Ucrânia?



A situação na Ucrânia é tão complicada que a maioria dos países preferiu não se pronunciar sobre o assunto nos últimos meses, caso raro nas relações internacionais, principalmente quando estamos falando sobre a soberania e o território de uma nação. As tensões foram tamanhas que canais de notícias do mundo todo acamparam em Kiev esperando o inicio de uma guerra.
A Ucrânia é o principal caminho para o transporte de gás para a União Europeia. Esse gás vem da Rússia e é vendido em sua maior parte para a Alemanha. Durante anos a Ucrânia foi parte da URSS, bloco socialista da Guerra Fria – e portanto tem uma série de identidades em comum com a Rússia. Poucas pessoas sabem, mas anteriormente a Crimeia já fez parte da Rússia e foi anexada à Ucrânia durante a Guerra Fria. Isso foi usado inclusive como justificativa pelo governo russo para a tomada, dando explicações bem próximas as de Hitler durante suas anexações¹. O  argumento então era de que povo presente ali falava seus idiomas e que “seus corações eram russos”.
Bem, refutar esse ponto é fácil: Brasil e Portugal falam o mesmo idioma, mas nem por isso “nossos corações são portugueses”, não é mesmo? Contudo, em se tratando de casos como o da Ucrânia, é incrível como violações graves tem justificativas frágeis, aceitas de bom tom pela comunidade internacional, principalmente quando um dos envolvidos se trata de um país com cadeira permanente no conselho de segurança da ONU.
A formação da Ucrânia como a conhecemos hoje se deu pela mistura das culturas europeias e russas. Pelo mapa abaixo pode-se perceber que a língua não é exatamente igual em todo território, com localidades falando mais de 75% do idioma russo. Isso se dá, principalmente, pelo passado imigratório e a fusão com a antiga URSS. Também pela Europa ter um histórico de criação de países menores, com culturas difusas por questão de segurança, colocando esses países como barreiras entre duas grandes nações e assim evitando um conflito maior. A Ucrânia tem características próximas as de um país estabilizador (a denominação internacional é país tampão). Essa formação pode gerar conflitos internos, já que numa mesmo nação se concentram etnias e famílias que por gerações tentam dominar algumas partes do território.
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Aqui se faz necessária uma explicação rápida sobre as manifestações que resultaram na retirada do antigo presidente Viktor Yanukovich e o início das tensões com a Rússia. Os ucranianos se levantaram contra o governo assim que ele anunciou uma aproximação econômica com o Kremlin e o consequente afastamento da União Europeia. Temendo uma nova era de exploração similar a dos períodos soviéticos o povo foi às ruas, pegou em pedras, arma, guerrilhou como pode para acabar com essa possibilidade. Muito sangue foi derramado.
Como poderia portanto um povo que há poucos meses lutava por um distanciamento da Rússia permitir uma anexação territorial e uma quebra de sua soberania?
Logo após a queda, uma série de grupos paramilitares surgiu na Crimeia, muito bem armados (até demais para os padrões internacionais de guerrilhas similares), controlando aeroportos e uma série de outros locais de elevada relevância. A população local fez um referendo durante o período e se separou da Ucrânia. Vários boatos de fraude se formaram, anunciando que as urnas haviam sido adulteradas², mas já era tarde: o exército Russo, estacionado na fronteira, já estava dentro do território. Pouco tempo depois Putin assinava os termos de anexação.
Há um conceito denominado Interdependência Complexa, formulada por Keohane e Nye, que afirma que todos os países possuem uma dependência mútua de maior ou menor grau. Assim observamos, por exemplo, que o mundo tem uma grande dependência com os EUA e a China, enquanto o oposto não é verdadeiro.
Mesmo não parecendo diretamente relacionada com a Crimeia ou a Ucrânia, a assinatura de um acordo entre China e Rússia garantindo o fornecimento de gás russo aos chineses coloca o conceito anterior em prática. O acordo diminuiu o grau de dependência da Rússia com a Alemanha. Assim, no caso de um bloqueio completo por parte da União Europeia, os efeitos não seriam tão severos para a Rússia, além de favorecer um oligopólio das empresas de exploração de gás, todas com um relacionamento muito próximo ao governo.
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A estratégia mais eficaz dos russos não foi obrigar a população da Crimeia a aceitar a anexação como Hitler havia feito. Eles começaram a mandar uma infinidade de verbas para a Crimeia, passando assim uma imagem de que a anexação fora algo esplêndida para os cidadãos e disparando uma onda de revoltas separatistas em todo território ucraniano.
Nas Relações Internacionais há uma diferenciação entre “Soft e Hard power”: o primeiro é a influência externa feita de maneira branda e regular por muitos países, nessa categoria entram desde auxílios econômicos, até mesmo filmes e outros instrumentos culturais. E o segundo é o uso de Políticas mais bruscas como bloqueios econômicos, guerras e intervenções. Durante essa crise internacional foi possível ver ambas as atitudes, não somente pela Rússia, mas por alguns países como Estados Unidos e o conjunto de nações da União Europeia. Cada um de sua maneira tenta persuadir a Rússia a desistir de seus planos de anexação. Infelizmente, as sanções são brandas e dificilmente terão algum efeito quanto à decisão de anexação, gerando assim um impacto mínimo.
No caso americano a principal atitude tomada foi um bloqueio a determinadas pessoas e empresas de efetuarem transações entre a Rússia e os EUA. Além do impedimento de alguns cidadãos russos de entrarem no território americano. Em suma, a atitude tomada pelos EUA pune os empresários e os civis, que sofrem com um bloqueio monetário e um decréscimo no mercado financeiro, mas acaba de certa forma tocando apenas aqueles que realmente deveriam ser punidos. Já é da tradição russa fazer de seus civis o escudo utilizado contra os tiros destinados aos seus políticos³.
A União Europeia já tem um desafio muito maior: sanções contra a Rússia não apenas prejudicariam os russos, como acabariam com os europeus também. Como havia colocado anteriormente, países como a Alemanha (hoje, principal economia do bloco) necessitam do gás natural russo. Um bloqueio do gás certamente prejudicaria a Rússia, mas seria catastrófico para a União Europeia.
A Rússia vem tendo uma postura nacionalista na última década. Muitas das atitudes tomadas na última administração tiveram como objetivo um ganho de prestígio. Algumas atitudes foram extremamente válidas, como por exemplo o caso da retirada das armas químicas da Síria, que evitou uma carnificina na quase intervenção americana. Outras políticas, como o caso de uma maior aproximação com a Coreia do Norte, a repressão a protestos internos e a intervenção estatal no mercado, vem trazendo preocupações quanto ao futuro do país.
Para tentar conter o escalonamento das anexações e auxiliar num processo de paz, a União Europeia está fechando um acordo comercial com a Ucrânia. Esse tipo de acordo facilita o fluxo de capitais, normalmente dando um impulso econômico ao país. Todavia, a Ucrânia não está em um processo de entrada para a União Europeia, como alguns jornais brasileiros comentam erroneamente – o próprio site do bloco não traz a Ucrânia como país possível de entrar. Por mais que fosse da vontade dos próprios ucranianos.
Portanto, o que ocorre atualmente na região é uma intervenção na busca por liberdade, utilizando o vácuo de poder gerado pela retirada do governo pró-Rússia, para desprover os cidadãos de sua livre determinação, com a posterior compra da opinião pública por meio de projetos sociais advindos dos contribuintes russos. Essa técnica era muito comum no antigo bloco soviético, mas como Margaret Thatcher já havia assinalado certa vez, políticas como estas duram somente até que o dinheiro dos outros acabe. A carga fica toda por conta dos contribuintes e empresários russos, que estão pagando a conta das atitudes autoritárias de seu governo que, pelo visto, continuará levando adiante, usando a força e o dinheiro público, suas ambições imperialistas.
¹ Hitler antes do começo da Segunda Guerra anexou a Austria e a Tchecoslováquia. Esta ação foi justificada por Hitler pelo fato de possuírem uma língua e tradições em comum com a Alemanha. Estas anexações culminaram na declaração pela França e pelo Reino Unido de um pacto pela proteção da Polônia, este desrespeitado pela Alemanha nazista e que gerou a Segunda Guerra Mundial.!
² O resultado do plebiscito foi de 95,5% a favor da separação. Isto chamou a atenção ao redor do mundo, já que um índice tão alto logo após uma revolução que ia contra essa ideia era quase impossível. Esse link tem uma passagem mostrando a insatisfação dos lideres ao redor do globo em relação a veracidade do resultado. 
³ Durante todo o período da Guerra Fria a Rússia sofreu diversos bloqueios econômicos dos EUA e seus Aliados. Estes visavam prejudicar os comandantes e generais russos. Contudo como em diversos regimes totalitários, as reclamações, privações e mortes dos civis não tinham importância para os comandantes. Os lideres viviam na bonança, construindo sua ilusão ideológica sem sofrer privações. Para mais informações sobre a realidade da URSS durante os tempos de Guerra Fria leiam o texto A fonte da conduta soviética de autoria de George Kennan

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