terça-feira, 5 de novembro de 2013

PSICANÁLISE DA VIDA COTIDIANA - Saudades


CARLOS VIEIRA 
“Nós possuíamos, realmente, um mundo maravilhoso: nele o sol era um rio de 
ouro que nascia todas as manhãs e o ar um país transparente que podíamos 
viajar com os olhos... Mas víamos que a sua vida seguia para longe, levada 
pelos homens. E, então, ficávamos olhando, olhando... 
Cecília Meireles, in Episódio Humano.
Saudades da minha terra natal, que nunca me conformei que a chamassem de Capela, pois seu nome original era belo, poético e singelo: Conceição do Paraíba. A matriz, Nossa Senhora da Conceição, foi onde pela primeira vez foi acometido de um alumbramento: a primeira comunhão; experiência surreal, acompanhada de uma sensação de levitar, de receber a “graça” de Deus. 
Saudades de acompanhar o Pároco, como coroinha, nas missas de Réquiem. Missas de sétimo dia, na qual cantávamos em latim os mais belos e dolorosos cantos gregorianos. Saudade de Anita, que ao colocar a pátena para que ela comungasse, pisquei os olhos para nos encontrarmos na praça após a missa. Na praça, as moças rodavam em círculo e os rapazes, parados as observavam com olhos de futuros namorados, era um verdadeiro desfiles de jovens belas, coradas de praia e vestidas de minissaias. 
Saudades do grupo escolar, do Teobaldo, um grande mentiroso da cidade, mas que contava suas mentiras e nos alegrávamos e morríamos de sorrir. Saudade da fazenda, da fazenda de meu pai que distava da cidade alguns quilômetros. Saudades do meu primeiro cavalo, o Bolinha: companheiro, lindo, castanho e de um trote e uma passada produzindo um conforto nas cavalgadas. No meio da semana, à tarde, saía no Bolinha para namorar na cidade. Apeava e amarrava-o no muro da casa de Anita, ficávamos namorando até ao entardecer, quando retornava à casa da fazenda. 
Saudades das procissões de São Benedito, procissões belíssimas, meus parentes segurando o andor do santo, o cântico ladeira abaixo, os sinos batendo numa nota só, as pessoas pagando promessas e um coroinha recolhendo doações à Paróquia. 
Saudades já de Maceió, terra dos generais, praia da Pajuçara, onde o mar beija as areias. Saudades dos papos em torno dos “sete coqueiros gêmeos” que nasceram juntos e ainda permanecem lá. Saudades dos bailes no Iate Clube: foi ali, pela primeira vez, que conheci e dancei ao som de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Vanderléia. Magnífico, magnífica “jovem guarda”. Os bailes eram desafios para nós. Tínhamos que tirar a jovem para dançar, e algumas vezes, uma delas nos recusava: a algazarra era geral, quando levávamos “um fora”. Mas, o que é belo na adolescência é a maneira lúdica e brincalhona de reagir diante de tais experiências. 
Saudades do Sérgio, do Kelmo. Éramos três colegas muito íntimos e todos estudavam no Colégio Diocesano, colégio dos Irmãos Maristas. Sim, naquela época era uma verdadeira dádiva de cultura: estudávamos latim, francês, inglês, um pouco de alemão, filosofia, ciências e cultura teológica, sem esquecer o futebol e o Irmãos Silvino, grande espanhol, técnico do time de basquete. 
Saudades das tardes que nós três subíamos a ladeira do Farol, e íamos conversar no alto da cidade: geralmente eram conversas sobre como modificar a cidade, como planejar a vida das pessoas com mais justiça social, questões sobre o “ser” e o “ter”. Nessa época líamos Sartre, Graciliano Ramos, Eric Fromm, Proust e Carlos Drummond entre outros, sem deixar de ler nosso poeta alagoano maior – Jorge de Lima. Saudades das indagações sobre o sentido da vida, sobre o namoro, o casamento, e a pobreza cruel do Nordeste, onde os senhores de engenhos e usineiros escravizavam os empregados para auferir lucros exorbitantes. Nessa época foi apresentado, através dos seus livros de poesia concreta, João Cabral de Melo Neto. 
Saudade de Rosa! Rosa foi uma experiência inédita: começamos a namorar por cartas e bilhetes, e somente quatro meses após, tivemos a ousadia e a coragem de nos encontrarmos na rua do Macena. Rua do Macena, perto da rua da Alegria, da rua Augusta e da rua do Sol. Nomes lindos, esteticamente belos, hoje transformados em nomes de políticos, médicos e advogados ilustres da cidade. A beleza dos nomes poéticos deu lugar a falta de inspiração e os interesses políticos. Ruas arborizadas, revelando um ar provinciano, repletas de pássaros, bucólicas e espaço amoroso dos nossos namoros. Na rua Augusta morou meu primeiro analista – Dr.Sadi Carvalho, uma figura exótica, magra, culta e de uma intuição nunca vista pela minha pessoa. Lia Freud no original, dava conselhos e regras de como viver bem emocionalmente. Foi dele uma frase que mora na saudade: “as nossas forças emocionais dirigem nossas vidas”. Sadi foi meu primeiro analista, aos 16 anos. Morou também na rua Augusta, minha esposa atual, que pedi para namorá-la através do escrito de um acróstico, acróstico sobre seu nome. 
Saudades do mar, do mar de Maceió! Mar de várias cores, águas mornas, límpidas e um sal que salpicava por nosso corpo, e às vezes entrava pela boca, sal de Iemanjá, sal de batismo de mar, sal de salgar a vida em transitórios estados de infinitude e transcendência. Mar que vai, que leva e traz tudo que por ele nadar ou se afogar. Mar de cores de arco-íris , no entanto mar de águas-vivas, que às vezes enrolavam em meu peito, ardendo, ardendo, que só saía passando areia da praia. 
Saudade da livraria que agora a memória me trai, só me lembro que era vizinha à Farmácia Nacional, onde às sextas-feiras se reuniam os fazendeiros, agiotas, prefeitos do Estado. Ali compravam, vendiam fazendas, lotes de gado, conversavam sobre os crimes, principalmente políticos e familiares. Vez por outra, sabia que alguém fora assassinado na porta da farmácia. O assassino, em sua postura “ética” não fugia, se entregava, pois a honra, a traição e todos os motivos foram vingados. 
Saudade do Cine São Luiz! Ah o cinema!, o escurinho do cinema, os filmes de faroeste e as belas, dolorosas e trágicas películas de casos de amor. Ali, conheci na tela Kim Novack, a loira mais linda que percorria meus sonhos e apontavam para a escolha de uma mulher assim na vida. Chorei nos filmes de Sinatra e acompanhei todo o seriado do Zorro e Tom Mix. Havia um pistoleiro, claro, um personagem de mocinho, Hopolano Casside, que depois soube que o nome era Hopolan Kassid. 
Saudades dos namoros dentro no cinema: mãos nas mãos, arrepios de descarga de adrenalina, beijos, somente nas mãos, o que já era uma grande conquista. Sair desfilando pela Rua do Comércio com a namorada era uma façanha estonteante! 
Saudades dos papos com Getúlio Mota, pintor modernista, e com meu amigo Luiz Gutemberg, jornalista, que anos depois saíra de Maceió para a cidade grande do Rio de Janeiro, e que o reencontrei em Brasília. Foi o primeiro jornalista que convidei para fazermos uma palestra, juntos, sobre “Infância” de Graciliano Ramos no Instituto de Psicanálise. Dois alagoanos e um conterrâneo ilustre, um dos maiores escritores que esse país já teve e tem, Graciliano tinha a sabedoria de poder escrever sem perder nem desperdiçar uma palavra. Suas palavras enxutas, lavadas na água e no anil, como escreve em São Bernardo, outro romance seu. 
Saudades enfim, de uma época em que tive a coragem e o medo de sair da minha terra em direção a São Paulo. Mais ou menos trinta pessoas, entre parentes e amigos bradando: fica, fica, o que você vai fazer lá longe? Chorava ao entrar no avião, sem olhar para trás, caso contrário não teria coragem de me separar da família e dos amigos. 
A experiência de ir morar na “selva de pedra”, de alguém que nascera na pequena Conceição do Paraíba, é para outra ocasião. A “formiguinha” diante do “elefante”. 
Relendo um belo livro de Augusto Frederico Schmidt – “Saudades de mim mesmo, uma antologia da prosa”, Editora Globo, escritor e poeta que nos brinda com sua forma leve, gostosa e de uma prosa poética que encontro também em Paulo Mendes Campos, escreveu: 
“Saudades das coisas esquecidas, das pequenas alegrias, dos primeiros livros que amei. Saudade do olhar irônico, meio comovido, com a distante adolescente da rua São Clemente, já com o uniforme do colégio, me via passar correndo para não perder o bonde que me levava para a cidade."
Carlos.A.Vieira, médico, psicanalista, Membro Efetivo da Sociedade de Psicanálise de Brasília e de Recife. Membro da FEBRAPSI e da I.P.A - London.

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