Nos últimos 25 anos, a taxa de suicídio de jovens brasileiros aumentou 30%. Impotência, frustração e a debilidade das relações interpessoais são fruto da sociedade capitalista
Inez Lemos
Publicação: 21/09/2013 04:00
O mundo atual recusa a figura transcendente. Os valores são definidos de forma alheia à história, à mitologia e à carga simbólica que garantia as trocas. Somos solicitados a nos desfazer das nuances simbólicas que subsistiam nas transações de mercado. O foco é o simples e neutro valor monetário da mercadoria. Quando viver passou a ser ato operacional, sem nenhum apelo transcendental, tradicional e moral, desespera-se a humanidade, destituída de alma, sua mais nobre substância. Ao homem dessubstancializado e dessimbolizado resta a servidão ao duro jogo da circulação infinita de mercadorias. Assim, livres do passado e dos signos que nos identificam, reverenciamos as propostas da sociedade de mercado. O novo sujeito, desatrelado de sua carga subjetiva, é oco, triste, entediado e deprimido – uma vez que, fora do simbólico, circula apenas no real. E a vida no real é insuportável. Impossível ser feliz transitando por meio de semblant soft.
Destaco alguns traços de nosso tempo no propósito de investigar o sofrimento vivenciado pelos jovens quando deles são esperadas apenas a venda e a compra de mercadorias. Muitos não são acolhidos em seus delírios simbólicos, em suas fantasias. Quando um dos integrantes da família apresenta desajuste, foge ao roteiro doméstico e decepciona, opta-se por sua exclusão. Expulso do paraíso, esse indivíduo amarga a devastação, pois nem tudo é negociável. Destituído de sua autonomia e de sua insígnia narcísica, o jovem se vê diante do mal. O mal é o sonho que não se cumpre.
A arte é a instância que melhor acolhe a expressão humana, expressão de desamparo e solidão. É fascinante abordarmos o vazio e a incompletude humana por meio do belo. Ao criarmos, elaboramos os sentimentos incendiários que nos torturam. O que falta aos jovens que saem de cena e puxam, precocemente, a cortina da existência? Como não se demitir de um mundo que pressiona para o sucesso e não tolera o fracasso? Como esculpir a angústia abissal, enlaçar-se no erotismo do sonho que não se cumpriu? Sublimar é descobrir formas de suportar o objeto perdido, a falta tributária da condição humana. Quando as perdas não são simbolizadas – bordadas com pedras e miçangas –, restam-nos a amargura, o gosto de morte na boca. Como enfrentar frustrações? Sentir-se frustrado é experimentar a sensação de estar em falta, em desvantagem – mágoa por algo que não se cumpriu.
A existência humana é peleja, esforço destinado a apaziguar insatisfações. Todos anseiam por gratificação – estado de graça, sentimento de plenitude e reconhecimento. Somos movidos por pulsões, elas tanto podem produzir obras de arte quanto neuroses. Que destinos devemos dar às pulsões, que interesses norteiam as escolhas dos jovens? A psicanálise vincula criatividade e sublimação. Cada cultura incentiva modalidades de sublimação. Ao mudar o objeto da pulsão, tem-se o reordenamento no circuito pulsional. Ou seja, pulsão é energia conectada aos valores de sua época.
Em “Escritores criativos e devaneios”, Freud aponta a criação como responsável pelo bem-estar – tanto do autor quanto do leitor... Diz ele: “O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos subordina com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias”.
Fantasia O debate aponta para a capacidade de o sujeito se envolver com o que produz – criação artística ou atividade que lhe confere satisfação. Por meio da sublimação, imprimimos sentido a fantasias que não cessam de pulsar. Cada época elege valores que operam na proteção ao sofrimento e à loucura. Como orientar os interesses narcísicos? A escolha entre a vida empobrecida, neurótica ou de grande riqueza simbólica dependerá de nossa capacidade de sublimação. O vínculo que enlaça o indivíduo e o coloca na posição de sujeito desejante e entusiasmado com sua produção se situa numa fantasia inconsciente, pois o objeto que causa desejo é perdido desde sempre. Impossível reeditar a primeira experiência de prazer. Resta-nos descobrir formas simbólicas de representá-la.
Toda civilização é fonte de sofrimento, viver em sociedade exige renúncia, nunca vamos nos realizar plenamente. Entretanto, devemos dar ouvidos aos berros, ao que em nós urra, clama por satisfação. É trabalho de detetive, pois há toda uma logística em nos desviarmos e nos confundirmos, fazendo com que desejemos o que, no fundo, não desejamos. Ao transitar fora do eixo subjetivo, desprezamos a herança simbólica, empobrecemos a existência e, vulneráveis, sucumbimos frente aos interesses do mercado. Viver bem, cultuar a satisfação interna, enfrentar a falta visceral e o vazio existencial são tarefas de toda uma vida. Aspirar à felicidade é função social. O sujeito feliz sabe compensar a insatisfação provocada pela civilização. Suporta melhor contradições e adversidades da vida.
Tabu Pesquisa feita no Brasil registra que a taxa de suicídio entre jovens aumentou cerca de 30% nos últimos 25 anos. Para o psiquiatra Neury Botega, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é importante falar sobre o assunto. Esse tema deve deixar de ser tabu entre profissionais da saúde. Dados relatados pela imprensa comprovam que o deserto é destino dos não engajados no discurso capitalista. Conversando com jovens que anseiam por realização pessoal e profissional, percebo que a maioria se sente frustrada, infeliz por não conseguir ocupar lugar de destaque e por não ser reconhecida pelo que produz. Junto da frustração há a pressão da família e da sociedade, pois a maioria é educada para brilhar, ganhar muito dinheiro e fama.
A vida que se tece no anonimato, longe das luzes da ribalta, exige coragem moral. Superar a incompletude e a transitoriedade não é tarefa fácil. Excluídos entre os bem-sucedidos, sem expectativas e impotentes para provocar movimento em suas vidas, muitos se desesperam. Como enlaçar o sujeito, como resgatá-lo em um vínculo erótico que garanta satisfação?
Será que o suicídio, no estado atual do capitalismo, metaforiza o fracasso da sublimação? Na luta para obter prazer, algo fracassa. O prazer não foi substituído pela satisfação sublimada – a gratificação narcísica não se cumpre na produção artística ou profissional. A era da tecnocultura não seria suficiente para proporcionar aos jovens o apaziguamento necessário, os meios que vão operar na realização dos desejos? Privados de suas vias de expressão e diante de um sonho frustrado, jovens se desesperam. Faltam-lhes forças para, da lama, fazerem ouro.
O inferno é qualquer lugar que nos limita e impede de expressar incômodos, sentimentos oceânicos. Se não formos competentes para descobrir nichos de paixão, se não nos deliciarmos com o que produzimos, sucumbimos. A felicidade está em gostar. Sem gostar é impossível ter saúde. Gostar é diferente de ansiar. Ânsia, sanha, insânia. O corpo em fúria dilacera. Contrariado, o sonho é dantesco – tormento, desgosto: tenta fugir ao açoite, imperativo que conduz a atos desarmônicos com a natureza ôntica. A gratificação potencializa, empresta força ao desejo frouxo e o impulsiona. A atividade criadora barra a frustração e viabiliza o enlaçamento do sujeito com sua interioridade, disponibilizando-o para a produção artística, superando o medo do fracasso e a angústia ao se expor ao outro. Na alteridade, realiza-se o laço social, a comunicação com o mundo.
Tédio O suicídio é a forma radical de escapar da sensação de impotência e da dificuldade de provocar mudanças. A passagem ao ato sem visitar entranhas. Ou o tédio deflagrado pelas máquinas, quando as relações interpessoais perdem consistência. Hoje, amor e amizade são conduzidos por sites – ações e afetos que antes pertenciam ao acaso agora são tarefa de empresas virtuais, esmaecendo a intensidade dos sentimentos.
Quando não ocupamos lugar que assegure pertencimento, desabamos. Sem partido e sem heróis que os representam, jovens partem em busca de uma causa – o coro dos descontentes se manifesta nas ruas, arrisca-se a vida em revoltas. A vida só vale a pena quando se tem uma causa pela qual vale morrer? A luta não é mais de classe, mas de place – lugar –, de lamento pela perda de espaços de subjetivação e pela descrença no consumo individualista, que não o preparou frente aos anseios existenciais. Se fantasiar e simbolizar é tratar a insatisfação, muitos perambulam no real – inferno que habita cada um de nós.
Inez Lemos é psicanalista
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