domingo, 19 de maio de 2013

A pirâmide de Pyongyang



Considerado o "pior prédio da história da humanidade", o inacabado hotel Ryugyong, cravado no centro da capital da Coreia do Norte, é uma prova da megalomania e insanidade dos ditadores do país

FILLIPE MAURO

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O Ryugyong arranha-céu de mais de 330 metros de altura no centro da Coreia do Norte, Pyongyang. Seu formato de foguete atende aos fetiches atômicos dos ditadores norte-coreanos (Foto: Philipp Meuser)
Não é só com armas que a Coreia do Norte sabe blefar. O país que em abrilcolocou toda a comunidade internacional em alerta após várias ameaças de um ataque nuclear também usa da arquitetura para mascarar suas fragilidades e simular uma prosperidade ilusória. O futurista hotel Ryugyong, cravado no centro da capital Pyongyang, daria inveja a diretores de ficção científica. O prédio seria o cenário perfeito para as gravações de clássicos como Blade Runner e Guerra nas Estrelas. Um insólito arranha-céu de mais de 330 metros de altura que segue o fetiche atômico dos ditadores norte-coreanos, formando uma espécie de foguete espelhado prestes a decolar. Três “asas”, cada qual com um “espinho” de 100 metros de altura, criam um contorno triangular e pontiagudo. Sobre seu eixo central, surge um cone de 40 metros, onde seriam instalados sete restaurantes de alta gastronomia, com vista panorâmica para a nublada Pyongyang. Ao longo de seus 105 andares, diversas casas noturnas e um cassino. Todos inacabados. Um delírio incompleto e abandonado, com direito a todos os luxos que o capitalismo pode oferecer.

A pedra fundamental do Hotel Ryugyong foi lançada em 1987. Embora mais pareça um pinheiro de natal, seu nome significa “cidade dos salgueiros” – uma alusão a Pyongyang. O regime sonhava em superar os 226 metros de altura do hotel Westin Stamford, inaugurado um ano antes em Singapura pela empreiteira sul-coreana SsangYong. Um arranha-céu cilíndrico que não chega aos pés da excentricidade de seu rival norte-coreano. Segundo o plano inicial dos engenheiros de Pyongyang, as obras não deveriam durar mais de dois anos. A meta era fazer sua inauguração coincidir com os preparativos da cidade para a 13ª edição do Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes. Em preços da década de 1980, o país mobilizou o equivalente a 1,5 bilhão de reais para a execução do projeto. Na época, o montante representava 2% do PIB norte-coreano.
O festival ocorreu e vivenciou naquele ano sua maior edição. Mais de 22 mil jovens de 177 países desembarcaram em Pyongyang para defender a “solidariedade contra o imperialismo”. Para os oito dias de atividades políticas e esportivas, a Coreia do Norte conseguiu concluir o estádio Primeiro de Maio Rungrado, que é até hoje o maior do mundo, com espaço para 150 mil pessoas. É lá que ocorre todos os anos o célebre festival Arirang. Um evento de proporções massivas, no qual multidões apresentam coloridas e sincronizadas coreografias para narrar a história do país. Os estudantes estrangeiros só não encontraram pronto o grande prédio que o regime havia prometido para hospedá-los. Era 1989 e a União Soviética, o maior credor do regime norte-coreano, entrou em colapso. Sem verbas, a obra não conseguiu contornar seus atrasos. As inaugurações eram sempre adiadas até que, em 1992, o abandono foi definitivo. O hotel foi isolado e esquecido no centro de Pyongyang, apenas com sua estrutura de aço e concreto.
A falta de revestimento acelerou a degradação de seus 360 mil m². No final da década de 1990, peritos da Câmara de Comércio da União Europeia na Coreia do Sul analisaram a estrutura do Hotel Ryugyong e concluíram que sua estrutura era irreparável. O cimento empregado pela empreiteira do regime era de baixa qualidade e foram identificadas graves falhas estruturais. Havia fortes indícios de que o prédio era torto. Os poços dos elevadores estavam todos desalinhados. Inóspito e condenado, o Ryugyong acabou apelidado pelos escassos turistas de Pyongyang de “hotel fantasma” e “pirâmide mal-assombrada”.  
O que antes era apenas o fim da decrépita construção de um prédio tornou-se, em 1994, o início de uma crise econômica generalizada. O corte das generosas ajudas financeiras da União Soviética não comprometeu apenas a obra do Ryugyong. Também levou à falência as já frágeis cadeias produtivas da Coreia do Norte, quebrando sua produção agrícola. O episódio ficou conhecido como a grande fome da Coreia do Norte. Não havia mais combustíveis para as máquinas e fertilizantes para os campos. Para agravar ainda mais a situação, em 1995 chuvas torrenciais colocaram o país em absoluta carestia.
Embora não haja cifras oficiais, observadores das Nações Unidas afirmam que mais de três milhões de pessoas morreram vítimas de subnutrição entre 1994 e 1998. Os editoriais do Rodong Sinmun, periódico oficial do regime, pediam à população que enfrentasse a crise humanitária com o mesmo fervor que uniu seus antepassados ao “presidente eterno” Kim Il-Sung. Nos bastidores, o governo estabelecia regimes específicos para cada categoria de trabalhadores. 700 gramas de cereais para “proletários ordinários” e 900 gramas para “proletários industriais privilegiados”. Não fosse a China, o país entraria em total colapso. Pequim assumiu o lugar de Moscou nos suportes financeiros a Pyongyang. Cerca de 77% do combustível e 68% dos alimentos da Coreia do Norte passaram a vir como doações chinesas. Jamais a Coreia do Norte sobreviveu sem a ajuda de seus vizinhos.
O futurista hotel Ryugyong, cravado no centro da capital norte-coreana, Pyongyang, daria inveja a diretores de ficção científica (Foto: Philipp Meuser)
Ao longo de toda a grande fome, o hotel Ryugyong permaneceu da forma como foi deixado. Interditado e inacabado. Em 2002, a Coreia do Norte afirmou que não precisava mais da ajuda humanitária promovida pelas Nações Unidas. Com a estabilização da oferta de matérias primas, combustíveis e alimentos, surgiram especulações em países vizinhos de que a construção seria retomada. Na interpretação de japoneses e sul-coreanos, inaugurar um edifício tão megalomaníaco recuperaria a estima da população e sua credibilidade no regime – mesmo após quatro anos de fome.  
Acertaram. O Ryugyong voltou a ser construído em 2008, sob ordens do então líder Kim Jong-Il. A prioridade era revestir o edifício, tanto para conter sua deterioração quanto para eliminar do centro da capital a aparência decadente e abandonada de um prédio idealizado pelo governo. A conclusão da fachada faraônica da “pirâmide mal-assombrada” ficou por conta da empreiteira egípcia Orascom. Com o novo contrato, o regime retomou a antiga ideia de incluir no hotel espaços para atrações típicas do mundo ocidental. Em favor de sua imagem, Kim Jong-Il aceitava flexibilizar suas doutrinas e permitir o acesso de empresários de grandes corporações àquele espaço. Os engenheiros e arquitetos egípcios se entusiasmaram. Prometeram "uma mistura de hotelaria, apartamentos residenciais e centro financeiro" até 2012, ano em que o país celebrou o centenário de nascimento do presidente eterno Kim Il-Sung.
Quando o hotel era apenas uma estrutura abandonada, a Coreia do Norte se desdobrava para evitar que quaisquer imagens vazassem para seus “inimigos”. O Ryugyong manchava tanto a já frágil reputação do país, que raramente aparecia em fotografias oficiais de Pyongyang sem um bom tratamento de photoshop. Isso quando não era simplesmente cortado.
Após 25 anos de construção, sua fachada está completa e todas as janelas foram instaladas. Por dentro, continua oco. Vazio, sem móveis, acabamento e, acima de tudo, hóspedes. Os poços de elevadores ainda estão tortos e há quem arrisque que suas colunas podem ceder a qualquer momento. O Hotel Ryugyong escondeu seu esqueleto de concreto e ganhou a estética de um prédio financeiro. Já poderia ser confundido com um dos super-hotéis de Dubai não fosse sua forma estranha, de nave espacial dos anos 70. Com placas cromadas e vidros espelhados, retoma num sonho totalitário a estética típica do capitalismo.
A revista norte-americana Esquire classificou o Hotel Ryugyong como “o pior prédio da história da humanidade”. Uma espécie de “castelo de Cinderela” dominando com mau gosto a paisagem de Pyongyang. No entanto, há quem veja o edifício com um olhar especulativo. Empresas como a alemã Kempinski AG já negociam há vários meses a compra dos direitos de administração do prédio. Seus executivos acreditam que o fim do regime comunista está próximo. Com seu colapso, apostam que haverá uma avalanche de investimentos estrangeiros. Sanções financeiras aplicadas pelas Nações Unidas após o último teste de mísseis da Coreia do Norte, em 2012, impedem que o grupo hoteleiro assine contratos com o regime. No início deste ano, a empresa alegou que “pausou” as negociações devido a “questões de mercado”. Nega, contudo, que tenha desistido do projeto. Caso o regime não consiga concluir a obra, a companhia que o assumir terá que arcar com um custo de dois bilhões de dólares.
Como a maioria dos edifícios de Pyongyang, o hotel Ryugyong só tem alguma função nas histórias de ficção científica. Se sua construção não fosse interrompida, em 1992 teria sido o maior hotel do mundo. Hoje é o 47º mais alto e tem o 5º maior número de aposentos. Três mil quartos que jamais hospedarão os raros turistas que visitam a isolada Coreia do Norte.

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