segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Lei da Mordaça



Um elemento surpresa foi adicionado à cena, neste início de ano judiciário, e às expectativas em torno dos temas que sabidamente o STF (Supremo Tribunal Federal) deverá, cedo ou tarde, enfrentar. O PGR (Procurador-Geral da República) propôs ação direta de inconstitucionalidade em face de dispositivos inseridos na Constituição do Estado de Rondônia, por meio de emenda constitucional promulgada em 2002, pelos quais se veda aos membros do MP (Ministério Público) estadual que manifestem, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças de órgãos judiciais, proibindo-se, ainda, que divulguem, sem justa causa, conteúdo de dados, documentos e informações financeiras e eleitorais,  obtidas para fins de investigação de ilícitos penais e civis, sob pena de responsabilidade funcional, civil e criminal (ADI 4.910, Rel. Min. Dias Toffoli). ...

Sob o aspecto formal, à primeira vista, parecem estar preenchidas no caso as condições da ação. O PGR possui legitimidade para sua propositura (CRFB, art. 103, VI), dele não se exigindo a demonstração de pertinência temática para esse fim, uma vez que é tido pela jurisprudência do STF como legitimado universal para as ações do controle concentrado de constitucionalidade. Norma de direito estadual pode ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade perante o STF (CRFB, art. 102, I, a), inclusive a constante de Constituição estadual, fruto do exercício do poder constituinte decorrente, inerente à capacidade de auto-organização dos Estados-membros da Federação.

No mérito, a ação levanta questões caras ao Estado democrático de direito instituído pela Constituição brasileira vigente. Em primeiro lugar, há de se enfrentar o tema dos limites de atuação do MP, sob a ótica de sua autonomia institucional e da garantia de independência funcional de seus membros, existentes com o propósito de assegurar as incumbências de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Em segundo lugar, mas não menos importante, põe-se em debate a liberdade de pensamento, sob os aspectos do direito à informação, de um lado, e da vedação à censura, de outro.

Ao longo dos mais de 20 anos de vigência da Constituição, não faltam exemplos de proposições legislativas em âmbito nacional com a finalidade de fixar limites expressos à atuação do MP, em especial no seu relacionamento com órgãos e agentes de comunicação social. Pelo intento que possuem, recebem sempre a alcunha de “Lei da Mordaça”, independentemente de seu conteúdo específico. Das mais recentes, possuem sobrevida relativamente significativa dois projetos de leis em trâmite perante a Câmara dos Deputados. Uma, de 2004, pretende incluir dispositivo na lei de interceptação telefônica, estabelecendo que “o Ministério Público será sempre ouvido no caso de pedido de interceptação de fluxo de comunicações telefônicas, em sistema de informática e telemática, respondendo civil, penal e administrativamente a autoridade que der ensejo ao vazamento de informações protegidas por segredo de justiça” – seu trâmite, contudo, encontra-se parado desde 2010, quando, juntamente com outras várias iniciativas, foi apensada a um projeto de lei de 1995, com objeto mais amplo, de regulamentar a realização de interceptações telefônicas como um todo, pendente atualmente a análise do tema por uma Comissão Especial, cuja constituição foi determinada por ocasião do apensamento dos projetos.

Uma segunda iniciativa, com vida própria, recebeu parecer favorável da CCJC-CD (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados), sob o fundamento de proteção do direito à intimidade de investigados e da plenitude do seu direito de defesa. Trata-se do PL 1974, de 2007, que pretende tipificar como crime de violação de sigilo investigatório, sujeito à pena de reclusão de 2 a 4 anos e multa, “revelar ou divulgar fatos ou dados que estejam sendo objeto de investigação criminal sob sigilo”, conforme redação dada em substitutivo pela CCJC-CD, em junho de 2011. Um ano mais tarde, o autor do PL 1974 apresentou requerimento para sua inclusão em pauta do Plenário, tendo sido este o último movimento até o momento no trâmite da proposição.

Vê-se, pois, que a problemática possui interesse para além dos limites da aplicabilidade da Constituição de Rondônia em relação aos membros do MP estadual. É certo, contudo, que, em relação às proposições legislativas, enquanto não transformadas em lei, não dispõe o PGR de meios para questionar judicialmente sua constitucionalidade – afinal, no curso do processo legislativo, reconhece-se, quando muito, aos membros das Casas legislativas, mecanismo para defesa do direito ao devido processo legislativo, do qual são titulares. Por outro lado, se, do ponto de vista formal, existe mecanismo para esse questionamento em relação à norma constante de Constituição estadual e se, no mérito, é tão pungente o problema de potencial afronta à Constituição, é de se indagar o porquê do lapso temporal de mais de dez anos até que um PGR, chefe do MP da União que é, decidisse pela impugnação da norma.

Esse aspecto, aliás, não passou despercebido pelo Relator da ADI 4.910, que, em decisão monocrática, deixou de apreciar o pedido de concessão de cautelar formulado na petição inicial, consignando que, “em virtude da prolongada vigência da emenda impugnada e da relevância da matéria”, deveria ser aplicado ao caso “o procedimento abreviado do art. 12 da Lei nº 9.868, de 1999, a fim de que a decisão seja tomada em caráter definitivo”. O procedimento em questão consiste na submissão do processo ao Plenário do Tribunal, tão logo sejam prestadas as informações sobre a norma impugnada e tenha havido manifestação do AGU (Advogado-Geral da União) e do PGR, estabelecendo-se prazo para todos os atos em questão. Terá, então, o STF a faculdade de julgar definitivamente a ação.

Exercícios de futurologia ou indagações acerca de razões que a própria razão desconhece à parte, o melhor que se tem a fazer é acompanhar de perto o andamento da ADI, conhecer as informações prestadas, o teor das manifestações de AGU e PGR e, acima de tudo, ter ouvidos, olhos e mente abertos para as discussões que hão de se travar a esse respeito entre os membros do Tribunal responsável, em última instância, pela guarda da Constituição.
Fonte: Última instância - 18/02/2013

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