sábado, 27 de outubro de 2012

A confissão e o jornalista, por Miriam Leitão



Miriam Leitão, O Globo
Era apenas uma sigla: D.F. Assim os argentinos eram mandados para a morte no governo do general Jorge Videla, que durou de 1976 a 1981. Significa na gíria militardisposición final, destino que se dá a uniformes e objetos que não servem mais. Os que recebiam essa sentença (D.F.) desapareciam, alguns corpos foram queimados em fornos.
Qualquer dúvida sobre o caráter nazista do que houve na Argentina durante a ditadura militar acaba no relato objetivo do jornalista Ceferino Reato. Ele conseguiu tirar de Videla, na prisão, a confissão de que entre sete mil e oito mil pessoas foram mortas em seu governo.
O feito jornalístico foi conseguido, segundo Reato, por acaso. Ele estava entrevistando militares presos para um livro sobre os anos 1970 e viu Videla no pátio da prisão. Abordou-o e foi o início de uma entrevista, em várias etapas, de 20 horas.
Entrevistei Reato na Globonews. Ele veio ao Rio participar da Quinzena da Travessa, que promove debates sobre os regimes militares da América Latina. Quando terminou a entrevista, Reato me contou que Videla lhe disse que ele fora o primeiro argentino a lhe pedir entrevista. Não foi casualidade, portanto, mas senso de oportunidade que todo jornalista deve ter.
Videla confessou na primeira conversa que de sete mil a oito mil pessoas foram mortas num plano deliberado. O governo descentralizou a decisão. O país foi dividido em regiões. Em cada uma, os chefes militares tinham autonomia para decretar a pena capital e decidir o destino dos corpos. Videla era consultado nos casos mais graves.
“Nós chegamos ao golpe de 1976 com um consenso entre os militares. Havia que se matar um número grande de pessoas para ganhar a guerra”, disse Videla a Reato.
O general está convencido de que Deus vai lhe premiar por isso, admitiu que tem uma “dor na alma”, mas que não se arrepende e dorme tranquilo. É proibido levar gravador para dentro do presídio. Reato transcrevia anotações e levava na conversa seguinte para Videla ler. Ele fazia pequenas correções ou acréscimos e assinava.
Perguntei ao jornalista como os corpos desapareciam:
— Havia vários métodos. Atirar os corpos no mar ou nos rios. Arremessá-los de avião ou helicópteros. Enterrá-los em lugares clandestinos, em valas comuns ou individuais. Às vezes, cemitérios. Na província de Córdoba, em lugares descampados, fora das cidades. Outros eram queimados em fornos, como se diz que aconteceu na Esma (Escola Superior de Mecânica da Armada), mas também em outros lugares houve fornos gigantescos. E assim os queimavam. Outra forma de eliminação pelo fogo: juntavam-se pneus velhos de veículos e jogava-se o corpo dentro.
O general tem 87 anos. Deve morrer na prisão. Admitiu o roubo de bebês, mas disse que não era o plano inicial. Segundo ele, o caso saiu do controle.
O jornalista acha que o número de 30 mil mortos, estimativa usada normalmente, é uma cifra não comprovada. A lista feita em 1985, na comissão da verdade do governo Raúl Alfonsín, tinha 9 mil pessoas. Um massacre.
— Quando uma casaca militar ou botas não servem mais, na linguagem militar eles passam à “disposição final”. São descartadas. Essas pessoas eram similares a coisas — diz Reato.
No aconchego da livraria, ouvia essas atrocidades lembrando do dia em que entrei no gabinete de Videla para entrevistá-lo sobre a briga com o Brasil por Itaipu. Ele, no auge da sua glória.
Lembrei de um amigo argentino que, passando em frente à Esma, me disse: “Lá dentro, neste momento, alguém está morrendo.” Tempos loucos.

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