segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A falta de coragem política, por Everardo Maciel



O Brasil assiste, hoje, a dois acontecimentos singularmente importantes: o julgamento do mensalão e a greve no serviço público.
O mensalão, independentemente do desfecho do julgamento, é uma prova de vitalidade das instituições. Já a greve é um sinal de imaturidade nas relações entre os servidores e a administração pública.
A grande repercussão midiática do mensalão contrasta com a do movimento paredista, somente percebido pelos que são diretamente por ele atingidos.
Em nenhum dos casos, entretanto, há uma reflexão sobre as causas que explicam acontecimentos tão indesejáveis, o que é prenúncio de que eles certamente voltarão a ocorrer, não necessariamente da mesma forma que hoje.
As causas da corrupção política são inúmeras e, provavelmente, incluem as penas demasiado brandas para as práticas de crime eleitoral, a excessiva liberalidade na destinação de recursos do fundo partidário para partidos sem representação congressual, a possibilidade de migração de parlamentares para constituição de novos partidos arrastando tempo para participação nos programas eleitorais gratuitos e recursos do fundo partidário, a admissão de coligações partidárias nas eleições proporcionais, a completa falta de transparência no financiamento de partidos e candidatos, etc.
Vou destacar causas que, a despeito de sua importância, não são suficientemente exploradas.
De início, é necessário perquirir as razões pelas quais pessoas pouco virtuosas almejam mandatos políticos.
Não me impressiona o argumento de que o financiamento público das eleições seria fator capaz de desencorajar a corrupção eleitoral. Ele, simplesmente, iria universalizar o caixa dois.
O que mais provavelmente anima a postulação eleitoral das pessoas pouco virtuosas é o direito ao foro privilegiado nos processos judiciais e, sobretudo, a possibilidade de operar verbas orçamentárias, por meio das chamadas emendas parlamentares.
O foro privilegiado é uma aberração que segrega as pessoas, em função dos cargos que ocupam. E ao fazê-lo, paradoxalmente, suprime dos privilegiados o direito ao julgamento em dupla instância.
Em circunstâncias especiais, como a do mensalão, a supressão de instância pode afetar réus que não têm direito ao foro privilegiado, mas que se encontram, por assim dizer contaminados, por participarem em crimes praticados, também, por quem tinha direito àquele insólito privilégio.
Por mais bem fundamentada que seja a tese acolhida pelo Supremo Tribunal Federal quanto à impossibilidade de desmembramento, a verdade que se trata de um castigo impingido a quem, em tese, não seria alcançado pela regra. O erro está justamente na existência do foro privilegiado.
Ainda que não tenham grande expressão nos gastos públicos totais, sendo, por esse motivo, negligenciadas pelos analistas de finanças públicas, as verbas orçamentárias, qualificadas como transferências voluntárias, propiciam perigosos conluios que envolvem políticos, empreiteiras e outras empresas contratadas pela administração pública.
Essas verbas estiveram na origem de tenebrosos escândalos, rotulados como “anões do orçamento”, “sanguessugas” e outros esquisitos nomes.
Servem também como instrumento de barganha para cooptar os parlamentares, como uma espécie de mensalão que não requer saques em misteriosas agências bancárias, sacolas de dinheiro ou complexas operações de lavagem de dinheiro.
O disciplinamento das transferências voluntárias não exige muita ciência e sim disposição para reestruturar o modelo de gestão das finanças públicas, com base no art. 163, inciso I, da Constituição.
Vivemos, infelizmente, um longo período de apatia legislativa, em boa medida, causada pela tirania das Medidas Provisórias, da qual resulta uma mora legislativa levada ao extremo.
Na outra vertente das singularidades da agenda política contemporânea, temos a greve no serviço público, que parece ser grande, mas não se sabe ao certo sua dimensão, e que se anuncia como legal, ainda que não seja reconhecida como tal pela Justiça.
Algo, entretanto, é certo. Existem vítimas. São jovens que frequentam a escola pública – de má qualidade, quase sempre –, cujas perspectivas de inclusão profissional são adiadas. São empresas que não conseguem realizar negócios para reanimar nosso combalido PIB. São doentes que não conseguem acesso aos serviços de saúde pública.
A vítima, em síntese, é o povo. Essas greves concorrem, portanto, para aviltar, ainda mais, os precários serviços públicos, em flagrante contradição com o discurso grevista que ressalta um pretenso compromisso com sua valorização.
Não seria justo negar aos trabalhadores da função pública o direito à reivindicação salarial. De mais a mais, a Constituição admite no art. 37, inciso VII, o direito à greve, nos termos e limites fixados por lei específica.
Essa lei, contudo, inexiste, o que obrigou o Supremo Tribunal Federal a suprir, incidentalmente, a preguiça legislativa. Menos mal, mas insuficiente.
Esse quadro, sem contornos bem definidos, encerra uma montanha de dúvidas. Os dias parados devem ser pagos? A morosidade, mal disfarçada como operação-padrão, deve ser punida? Greve de policiais deve ser tida como motim? Quais são os serviços essenciais que não podem ser paralisados? Qual o rito das assembleias para a aprovação de uma greve? Deveria haver um canal institucionalizado de negociações ou um tribunal especial de conciliação e julgamento, para evitar a deflagração do movimento grevista?
A greve, especialmente no serviço público, deve ser um recurso extremo, porque a pretensão individual ou corporativa não pode suplantar o interesse público.
As demandas, quase sempre, incluem um “novo plano de cargos e salários”, o que, em verdade, é uma forma oblíqua de postulação salarial. Constituem, igualmente, uma evidência de que deveria haver uma lei geral de remuneração do serviço público, que previna a assimetria de remuneração entre os funcionários dos diferentes Poderes, institucionalize a ascensão profissional fundada no mérito, discipline as vantagens dos servidores, etc.
Sempre que uma demanda política não desfrutava de viabilidade ou consistência, se dizia que faltava “vontade política” para atendê-la, em uma manifestação primária de voluntarismo.
Falta vontade política, agora sim, para remover as causas da corrupção eleitoral e da degradação dos serviços públicos. Melhor dizendo, falta coragem política.

Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal

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