O homem de Cachoeira na Justiça
A organização criminosa comandada pelo bicheiro Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, ficou conhecida até agora por sua atuação em jogos ilegais, corrupção de agentes públicos e políticos e contrabando. A intensa atividade fica clara no extenso material obtido pela polícia na investigação que resultou na Operação Monte Carlo, em 29 de fevereiro. Gravações obtidas por ÉPOCA mostram, agora, uma nova faceta da atuação da turma. Para isso, a organização aproveitou-se da projeção e da boa imagem sustentada até então por seu integrante mais conhecido, o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO). O objetivo era tentar influenciar decisões do Sistema Judiciário.
Em fevereiro do ano passado, a Polícia Federal (PF) prendeu 19 policiais militares em Goiás durante a operação Sexto Mandamento – na Bíblia, “Não matarás” é o sexto dos dez mandamentos. De acordo com a investigação da PF, os policiais faziam parte de um grupo de extermínio acusado de matar inclusive crianças, adolescentes e mulheres sem envolvimento com práticas criminosas. Alguns assassinatos foram cometidos no horário de expediente dos policiais. Os suspeitos foram levados para o presídio federal de Campo Grande, em Mato Grosso do Sul.
Dias depois, em 3 de março, a situação dos policiais foi tema de uma das centenas de conversas entre Cachoeira e Demóstenes. Cachoeira pede a Demóstenes que converse com o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), para tentar transferir os policiais para um presídio goiano. As gravações mostram que o senador da República orientou o bicheiro no procedimento para ajudar os PMs acusados de assassinato.
“Eu tava com o Ronald hoje (...) o Estado interceder através do Ronald para puxar esse pessoal pra cá pra cumprir aqui”, diz Cachoeira. “Ronald” é Ronald Bicca, procurador-geral de Goiás na ocasião. Com seu conhecimento e experiência no Judiciário, Demóstenes – ex-procurador-geral do Ministério Público (MP) de Goiás e ex-secretário da Segurança do Estado – afirma que Bicca precisaria concordar com o pedido de remoção dos presos para que ele pudesse ser levado adiante. E diz a Cachoeira que seria mais eficaz atuar no MP. “Eu já falei com a turma para dar o parecer favorável. Fica tranquilo”, diz Demóstenes. Cachoeira pergunta quando aconteceria isso. Demóstenes diz que quando “assumir o moço”.
Oito dias após o diálogo, Benedito Torres, irmão de Demóstenes, assumiu a Procuradoria-Geral do MP de Goiás. Benedito afirmou a ÉPOCA que “não daria abertura a esse tipo de tratativa”. O MP afirma que “todos os pareceres da instituição foram contrários à aventada transferência”. O governador Perillo diz que jamais recebeu pedidos de Demóstenes para interceder em favor dos acusados. “O governador jamais permitiria sequer ser abordado para tal propósito”, disse Perillo em nota. O ex-procurador-geral Bicca disse que não foi procurado por Cachoeira ou por Demóstenes. O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, afirma que o senador Demóstenes Torres não vai comentar as acusações porque considera as gravações da Polícia Federal ilegais. A Justiça autorizou, em junho, a transferência de 15 presos para o Centro de Custódia da Polícia Militar, em Goiânia. Mais de um ano depois da prisão, apenas um dos acusados continua preso. Os outros exercem atividades administrativas na PM.
Não há, na investigação da PF, nenhuma referência a ligações da organização de Cachoeira com mortes. Ele tinha especial interesse na Polícia Militar (PM) por razões práticas. Entre os milhares de conversas captadas pela PF, há muitos diálogos de Cachoeira e de seus auxiliares com policiais civis e militares que faziam vista grossa a seus negócios ilícitos. Cachoeira usava sua influência política para nomear delegados e oficiais da PM para cargos estratégicos. A investigação da PF mostra que ele pagava propina para policiais. Ao todo, 28 policiais militares, sete civis e outros sete federais são apontados como membros da organização. Assim, Cachoeira assegurava proteção a seu império da jogatina em Goiás e na periferia de Brasília.
Desde a prisão de Cachoeira, em 29 de fevereiro, como parte da Operação Monte Carlo, ficou claro como Demóstenes conciliava sua atuação de político probo, com imagem respeitável, ao trabalho de membro destacado de uma organização criminosa, com ramificações no jogo ilegal, contrabando, evasão de divisas e corrupção de agentes públicos. O lançamento de suspeitas tão fortes, com evidências tão claras como as levantadas pela PF, tem o poder de mudar a percepção pública sobre uma pessoa. Há políticos que, por ser alvos frequentes de acusações, nem se abalam com novas denúncias. O caso de Demóstenes é totalmente distinto. Até o início de março, ele era um parlamentar de prestígio. Chegara à política graças à atuação como promotor e secretário de Segurança de Goiás. Em nove anos como senador, construiu uma sólida imagem de inimigo da corrupção, campeão de projetos de endurecimento de leis de combate ao crime e pela atuação em temas constitucionais. Em 2010, foi o relator da Lei da Ficha Limpa, uma iniciativa que vai dificultar a sobrevivência de políticos com problemas com a lei.
Demóstenes foi presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, uma das mais importantes da Casa. É a CCJ que sabatina e aprova (ou rejeita) magistrados indicados pela Presidência da República para ocupar vagas no Supremo Tribunal Federal (STF), no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Superior Tribunal Militar (STM) e para o cargo de procurador-geral da República. A posição abriu portas para Demóstenes nos mais altos escalões do Judiciário. Ele passou a ser um dos parlamentares de maior prestígio entre juízes e ministros de tribunais superiores. Passou a frequentar seus gabinetes para discutir questões constitucionais e federativas. Como membro da comissão de Orçamento, Demóstenes dedicou especial atenção às verbas destinadas ao Judiciário. Tornou-se o principal interlocutor do Ministério Público Federal (MPF) na comissão e brigava para destinar recursos ao MPF.
O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, foi um dos magistrados que mantiveram relacionamento próximo com Demóstenes. Eles se conheceram há cerca de dez anos. Gilmar e Demóstenes discutiram várias vezes temas relacionados ao Judiciário. Um deles foi uma Proposta de Emenda Constitucional para reforçar o papel da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Encontraram-se algumas vezes também em eventos sociais. “Até o dia em que vieram a público os fatos em torno do senador Demóstenes, autoridades públicas se relacionavam com naturalidade com o referido senador”, afirmou o ministro Gilmar Mendes em nota. “Até então o senador era credor da respeitabilidade de que desfrutava”. Recentemente, antes do conhecimento público dos relacionamentos paralelos de Demóstenes, o ministro César Asfor Rocha, do STJ, foi homenageado num jantar na casa de Gilmar. Entre os convidados de Asfor estava Demóstenes.
A boa fama e os relacionamentos de Demóstenes com pessoas influentes no Judiciário, sabe-se agora, eram vistos como um bem precioso por Cachoeira. Num diálogo de quatro minutos, no dia 16 de agosto do ano passado, Cachoeira e Demóstenes falam sobre a queda de Wagner Rossi (PMDB) do Ministério da Agricultura, sobre o ex-ministro José Dirceu (PT), até chegar à Companhia Energética de Goiás (Celg). Na conversa, Demóstenes comemora com Cachoeira uma decisão do ministro Gilmar Mendes, considerada favorável à Celg. “Conseguimos puxar aqui para o Supremo uma ação da Celg aí. Viu?”, diz Demóstenes. “O Gilmar mandou buscar, deu repercussão geral pro trem aí.”
No dia anterior, o ministro Gilmar decidira que o STF era o órgão competente para julgar uma disputa em que a Celg reclama indenização de R$ 1,2 bilhão da União, da Eletrobras e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O processo estava na Justiça Federal de Goiás, mas advogados da Celg recorreram ao Supremo por entender que o tribunal era o foro adequado. Gilmar aceitou os argumentos da Celg. “Há patente conflito federativo”, afirma Gilmar em sua decisão. Ele afirmou a ÉPOCA que seguiu a jurisprudência do Supremo e que não foi procurado por Demóstenes para tratar do assunto. Não há sinais de que as investidas de Demóstenes nos tribunais superiores tenham dado qualquer tipo de resultado. Mas a investigação da PF deixa claro que ele tentava usar seu prestígio no Judiciário para tentar favorecer os interesses da quadrilha de Cachoeira.
A sofisticação dos relacionamentos de Demóstenes se espelhava também por seus gostos pessoais. Demóstenes é conhecido no Congresso como um grande apreciador de vinhos e dono de uma admirada adega. As gravações da Operação Monte Carlo revelam que Demóstenes compartilhava o gosto por vinhos caros com Cachoeira. Num dos diálogos interceptados pela PF, Gleyb Ferreira, um dos auxiliares de Cachoeira, informa a Demóstenes os preços de cinco garrafas de vinho: duas, de determinado tipo, custavam US$ 2.950 cada uma; as outras três, de outro tipo, sairiam por US$ 2.750 cada uma. Demóstenes autorizou a compra e pediu para debitar no cartão do “amigo deles”. No dia 16 de agosto, Gleyb comenta com Geovani, outro comparsa de Cachoeira, que Demóstenes autorizara a compra de cinco garrafas e que cada uma delas custava R$ 30 mil no Brasil. Em outra conversa, Cachoeira testa os conhecimentos de Demóstenes na área, ao dizer que tomava o vinho “Purple Angel”. “Você conhece?”, diz Cachoeira. Demóstenes afirma: “É um vinho com rótulo meio azulado”. O Purple Angel é um vinho chileno, produzido com uvas carmenère.
Na semana passada, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investigará Cachoeira e suas ramificações iniciou seus trabalhos. Além de Cachoeira e Demóstenes, um dos principais alvos de disputa será a construtora Delta. Na semana passada, a empreiteira perdeu contratos com a Petrobras. O governador de Goiás, Marconi Perillo, decidiu não esperar ser envolvido na CPI. Pediu para ser investigado pela Procuradoria-Geral da República, após o site do jornalista Mino Pedrosa ter divulgado que um enviado de Cachoeira entregara um pacote com R$ 500 mil a Perillo no Palácio das Esmeraldas, sede do governo goiano. “É uma denúncia irresponsável, leviana, inverídica e despropositada”, diz Perillo. Outro governador investigado por envolvimento com Cachoeira é Agnelo Queiroz (PT), do Distrito Federal.
Em paralelo à CPI, Demóstenes enfrentará um processo no Conselho de Ética do Senado. Sua cassação é dada como certa. O relator da matéria, o senador Humberto Costa (PT-PE), diz que não usará as gravações da PF. Costa quer blindar seu relatório das investidas dos advogados de Demóstenes, que tentam anular, na Justiça, a validade das gravações da PF. Se elas forem a base da acusação do Conselho, Demóstenes pode escapar. Os senadores planejam cassar Demóstenes por quebra de decoro parlamentar. Em seu discurso na tribuna do Senado, ele disse que era apenas amigo de Cachoeira. A realidade mostra o contrário.
Na semana passada, Demóstenes passou rapidamente pelo plenário do Senado. Como acontece desde o início do escândalo, foram momentos constrangedores. Apesar das disputas políticas inflamadas, o plenário é, em geral, um ambiente de camaradagem entre iguais. Os senadores se cumprimentam, se abraçam e conversam animadamente. Quando algum é fulminado por um escândalo, e não conta com apoio político forte, cai num limbo. No tempo que Demóstenes passou no plenário, poucos o cumprimentaram. Alguns evitaram fazer isso, com receio dos olhares indiscretos das câmeras. O prestígio e a imagem respeitável que Demóstenes Torres desfrutava esvaneceram-se.
Ouça os áudios das conversas entre Carlinhos Cachoeira e Demóstenes Torres
3 de março de 2011 - “Já falei com a turma para dar o parecer favorável” |
Carlinhos Cachoeira e Demóstenes combinam providências para transferir PMs de Goiás, acusados de participação em grupo de extermínio, da penitenciária federal de Mato Grosso do Sul para um presídio em Goiás. |
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16 de agosto de 2011 - “Conseguimos puxar aqui para o Supremo uma ação da Celg” |
Demóstenes e Cachoeira comemoram a decisão do ministro do STF Gilmar Mendes de transferir da Justiça Federal de Goiás para o Supremo uma ação de litígio entre a Celg – estatal de energia de Goiás – e o governo federal, um processo que envolve valores bilionários. |
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