O Brasil que ama o futebol festeja a queda de Ricardo Teixeira, mas os maus hábitos não morrem fácil
17 de março de 2012 | 19h 15
Hilário Franco Júnior
A mitologia grega, na sua sabedoria metafórica para falar das grandes questões humanas, criou deuses, heróis e monstros memoráveis. Um destes é Medusa, figura perigosa com garras de javali, cabelos de serpentes, mãos de bronze e asas de ouro. A lembrança mitológica vem a propósito da recente demissão de Ricardo Teixeira da presidência da CBF. O Brasil que trabalha honestamente e ama o futebol comemora o fato, mas não tenhamos muita ilusão: o poder da cabeça da Medusa está em petrificar quem a olha (talvez por isso Teixeira tenha se mantido 23 anos à frente da CBF) mesmo depois de decapitada, diz o mito. É o que confirma o sucessor de Teixeira ao assumir o cargo: "Não se trata de uma nova gestão, mas de um novo presidente".
TASSO MARCELO/AE
Marin, o sucessor de Teixeira: ‘Não se trata de uma nova gestão, mas de um novo presidente'
Também não se deve ingenuamente festejar a decapitação da Medusa porque o mito explica que, se ela é mortal, tem duas irmãs imortais: qualquer analogia com a Conmebol e a Fifa não será mera coincidência. Como se sabe, os interesses de família são convergentes. Não é casual que também sejam suspeitos de corrupção o paraguaio Nicolas Leoz, presidente da Conmebol há 26 anos, e o suíço Joseph Blatter, presidente da Fifa há 14. Corrupção não só de dinheiro, porque depois desse a coisa que mais apreciam os cartolas é o prestígio: conta-se que Leoz queria ser agraciado com o título de sir pela rainha da Inglaterra para votar a favor desse país como sede do Mundial de 2018. Decididamente, longos mandatos estimulam maus hábitos tanto no futebol quanto na política.
Entre esses hábitos está certa privatização das instituições - não é fortuito que o criador do atual sistema político-financeiro da Fifa tenha sido João Havelange, mentor de Blatter (seu ex-colaborador e sucessor) e Teixeira (seu ex-genro). Este, aliás, sabidamente era candidato (palavra que, por ironia, deriva de candidus, "puro", "inocente", "transparente") à sucessão de Blatter em 2015. E para o posto vago na CBF o candidato (ainda ironicamente) seria Andrés Sanchez, que enquanto presidente do Corinthians ganhou um estádio novinho em folha, construído com dinheiro público, graças à rejeição do Morumbi como sede da Copa por parte de Teixeira - que tinha visto seu projeto de impor um apadrinhado como presidente do Clube dos 13 arruinado pela oposição encabeçada pelo São Paulo F. C.
Todavia, o quadro parece ter tonalidades ainda mais mafiosas. O aperfeiçoamento do "sistema Fifa" levou à descoberta de outro filão: promover as Copas do Mundo em países cujo controle das contas públicas não é, digamos, rígido. África do Sul (2010), Brasil (2014), Rússia (2018), Catar (2022) são oportunidades de ouro para grandes negócios. Desde que, evidentemente, os sócios locais aceitem "jogar o jogo". E o Brasil, em função de uma história política e uma tradição cultural que ninguém desconhece, revelou-se ao olhar apurado da Fifa um campo magnífico. Como os estádios seriam de forma geral construídos ou reformados com dinheiro público, que no Brasil não é de ninguém, ou é dos mais rápidos, bilhões estariam navegando entre ministérios, secretarias de Estado, empreiteiras. Quem perceberia, ou se importaria, com algumas migalhas (na escala total do evento) cedidas pela escolha de determinadas sedes ou de certos patrocinadores e empreiteiros?
A questão é que sócios podem se atribuir certas liberdades. Quando Jérôme Valcke, secretário-geral da Fifa, usou há poucos dias expressão pouco elegante, embora não ofensiva, para reclamar um aceleramento nas obras para a Copa, houve uma revolta nacionalista indignada na mídia e no meio político. Mas, se na forma ele esteve errado, estará no conteúdo? O azar de Valcke nesse episódio, e de Teixeira em todas as acusações que lhe fazem, é que no Brasil o futebol é a instância mais sensível da consciência nacional. No mais agudo da crise do mensalão, o presidente Lula pôde se servir do processo de escolha do Brasil para sede da Copa como manobra diversionista. O presidente da CBF não contou com essa possibilidade. No nosso país a corrupção política parece perdoável, a futebolística, não.
Se o mensalão aparenta nada ter ensinado à sociedade brasileira, pode-se sonhar que o teixeirão exerça influência positiva. Desde que, é claro, a saída de cena do personagem favoreça uma mudança estrutural no futebol brasileiro, não sendo apenas uma dessas notícias que causam grande alvoroço e dias depois todos esquecem. Nos termos do nosso mito, morta Medusa, seu sangue serviu tanto para fazer medicamentos curativos quanto venenos mortais. O vazio político agora criado na CBF pode se prestar para acertos de conta entre desafetos variados na corrida pelo poder. Mas também é possível que trabalhe para uma reforma em profundidade da instituição, o que pela força modelar do futebol no Brasil serviria para uma reflexão global de nossa sociedade.
HILÁRIO FRANCO JÚNIOR, PROFESSOR DO DEPTO. DE HISTÓRIA DA USP, É AUTOR DE A DANÇA DOS DEUSES - FUTEBOL, SOCIEDADE, CULTURA (COMPANHIA DAS LETRAS)
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