NO 75º ANIVERSÁRIO DE PELÉ, MILHÕES DE SÚDITOS FESTEJAM A IMORTALIDADE DO REI , by Augusto Nunes
Augusto Nunes
Pode ser que em outros países haja alguma lógica por trás de toda loucura. Não é o caso do Brasil. É uma loucura sem vestígios de lógica, por exemplo, o tratamento áspero dispensado por tantos nativos do País do Futebol ao maior jogador de todos os tempos. Nunca se viu nem se verá algo parecido, provou definitivamente o admirável documentário Pelé Eterno, de Aníbal Massaini, lançado em 2004. Meu irmão Ricardo Setti sugeriu que a CBF presenteasse todos os argentinos com cópias do filme. Vale a pena anexar à lista de agraciados todos os brasileiros com mais de 5 anos de idade.
Lastimavelmente, boa parte do país insiste em confundir Edson Arantes do Nascimento, um ser humano com defeitos de fabricação como qualquer outro, com Pelé, a misteriosa entidade que encarnou num mineiro de Três Corações para mostrar ao mundo o que é a perfeição no futebol. Os argentinos não misturam as jogadas magníficas de Maradona com os incontáveis pecados de Diego. Incapazes de enxergar a diferença entre um o homem e o deus dos estádios, muitos brasileiros dão mais importância a meia dúzia de gols contra atribuídos a Edson Arantes de Nascimento que os mais de 1.200 gols de Pelé.
Em qualquer país, as filas de espectadores ansiosos pelas imagens de Pelé Eterno se teriam estendido por centenas de quilômetros, provocariam assombrosos engarrafamentos humanos ─ e ai de quem traísse algum indício de contrariedade, porque o mais diminuto sinal de insatisfação configuraria uma afronta intolerável aos milhões de súditos mobilizados para a reverência coletiva ao monarca. Mas o Brasil não é um país qualquer. Vi o filme cinco vezes. Em todas sobravam lugares nas salas.
Se o protagonista fosse Messi, por exemplo, os cinemas da Argentina estariam com lotação esgotada até 2050, e os futuros avós estariam disputando a socos e pontapés um ingresso para o neto que nem nasceu. O país em que Lula virou campeão de popularidade prometendo o impossível tratou com indiferença o filme que mostra um gênio fazendo o impossível.
Pelé foi acusado de demagogo por ter pedido mais atenção para as crianças na noite do milésimo gol. Lula, um gigolô de adultos infantilizados pela idiotia, faz mil comícios por mês explorando impunemente a ignorância de gente para quem a vida consiste em não morrer de fome. O craque que alcançou a perfeição absoluta nos gramados é cobrado por supostos deslizes ocorridos longe dos estádios. O gênio de araque reincide acintosamente em crimes graves e é tratado como inimputável.
Pelé Eterno mostra quase 400 gols e dezenas de jogadas inverossímeis do Rei sem herdeiros. Conjugadas, as imagens confirmam que o Atleta do Século tinha mesmo equilíbrio de ginasta, rapidez de velocista, força de decatleta, resistência de maratonista, coragem de brigador de rua. Com pouco mais de 1,70m, chegava a altitudes inatingíveis para os pobres gigantes que tentavam impedir a cabeçada letal. Destro de nascença, aprendeu a usar a perna esquerda com igual eficácia.
Quem vira a lenda em ação constatou que o que pareceu sempre um sonho havia acontecido de verdade. Quem nasceu depois da Era Pelé foi obrigado a acreditar que existiu mesmo alguém com o arranque de Garrincha e a ginga de Muhammad Ali, capaz de levitar e mover-se no espaço como Nureyev, flutuar sobre os adversários como Michael Jordan, dissimular os movimentos seguintes como um Marlon Brando e manter todo o tempo o gramado inteiro sob a estreita vigilância de quem alcança, com olhar de fera, o milagre dos 360 graus.
Que Maradona, que nada. Como comparar qualquer outro ao craque que ganhou a primeira Copa do Mundo aos 17 anos ─ e nos 17 seguintes seria titular absoluto da Seleção Brasileira? E faria 1.281 gols, e provaria com os que por muito pouco não fez que no futebol pode haver a imperfeição mais que perfeita? Que apressaria o imediato cessar-fogo entre exércitos que preferiam perder a guerra civil a perder uma apresentação do Rei, e que adiavam o ataque inadiável para vê-lo atacando, solitário e invencível, a grande área inimiga?
Em homenagem ao mágico incomparável, o documentário deveria ser reapresentado em todas as cidades, todos os lugarejos. E todo brasileiro deveria ser obrigado por lei a arquivar momentaneamente inquietações de todos os gêneros para viver duas horas de deslumbramento na sala escura.
Eles ainda não sabem que ver Pelé é ser feliz.
*Augusto Nunes é jornalista e colunista da Veja.com. Dirigiu as revistas Veja, Época e Forbes e os jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Brasil e Zero Hora. Já ganhou quatro vezes o Prêmio Esso de Jornalismo. Internet:veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes.
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