Aconteceu de manhã, depois de uma noite inteira de chuva, quando toda gente botava a cara de novo na rua para ganhar a vida. Em algum canto escondido do planeta, um homem poderoso e aborrecido com o sinal ruim de sua TV a cabo decidiu dar cabo de tudo: entrou no quartel general a que só ele e outra meia dúzia de deuses tinham acesso e apertou o botão da bomba mais avassaladora já construída.
Em questão de segundos, um vírus criado em laboratório a partir do DNA dos quadrúpedes ganhou a atmosfera e envolveu toda a extensão do planeta. Nós, os tão especiais seres humanos, caímos doentes, arrebatados pela névoa sinistra, mergulhados em profundo sono de morte.
Durante dias, semanas e meses, por aqui só se ouviram as vozes dos outros animais, o som do vento e da chuva e das ondas e avalanches. Toda a criação humana fora silenciada.
Até que o primeiro homem acordou e se deu conta do desastre. Correu as ruas de seu bairro, invadiu as casas e escolas e empresas à procura de alma viva e nada. Ele estava só. Não havia sobreviventes, nem energia elétrica, nem telefone e nem Internet. Toda a comida nas geladeiras estava estragada e das torneiras abertas só saíam nuvens de insetos. Mas nada o incomodou tanto quanto o susto de olhar para si mesmo no reflexo de uma vitrine. Enlouquecido de pavor e desespero, ele subiu veloz as escadas de um enorme edifício até a cobertura e de lá atirou seu próprio corpo ao chão.
Aos poucos, os outros bilhões de seres humanos também despertaram do sono pesado. E aqueles que não acordaram defuntos, do outro lado da vida, quando abriram os olhos de novo se deram conta do que tinha nos acontecido. Sabe Deus por meio de quais artifícios e experimentos, mas havíamos todos sofrido uma pavorosa mutação: o vírus do cientista depressivo nos havia transformado em simples e belas mulas.
O susto da descoberta deu início ao mais barulhento caos mundial. Em cada canto da vida, hordas de bestas, jegues, jumentos, sete bilhões de jericos galopavam em desespero pelas ruas, atravessando vidraças com o peso de seus corpos de quatro patas, saqueando lojas de ração, relinchando ensandecidos a miséria de sua existência destruída.
O urro urgente do inconformismo custou um largo tanto a passar. E o estarrecimento e os massacres e as guerras que seguiram o que ficou conhecido como a “grande transformação” acabaram por reduzir a humanidade em bilhões de almas.
De nós, apenas a metade sobreviveu. Os outros cinquenta por cento sucumbiram em batalhas estúpidas, incompreensão, violência gratuita, ciúme, inveja, maldade, coices, patadas e corridas de cavalo, rebusnando o fedor de seu ego chicoteado pela realidade que, no fundo, não era boa e nem má: era o que nos restava. Porque, você sabe, da realidade se faz o que se quer e o que se pode.
Demorou, demorou muito mas, décadas de cavalgadura depois, reaprendemos a aceitar nossa realidade e a conviver sem mais.
À força do tempo que desembesta, os mais jovens chegaram com a potência da vida e sua nova esperança. Sem preconceitos, sem ter conhecido nossa antiga realidade, prontos para crescer livres, correndo pelos campos como cavalos fortes e em paz consigo, com sua terra e com os outros animais.
O mundo virou um só lugar infinito, com água e fogo e terra e oxigênio e comida e sonhos para todos, e todos por fim nos demos conta de nosso destino fascinante. Foi quando nos tornamos o que sempre fomos: bichos caminhando com honestidade e esperança pela vida. Redescobertos na fortuna da solidão e no prazer do reencontro com os seus.
Em nosso dia depois do outro, aprendemos de novo os valores e os bons costumes, o respeito e a compreensão, a amizade e o amor resignados porém atentos, pastando mansos e fortes no campo franco e azul da condição humana.
E até hoje, os mais antigos de nós ainda contam histórias fantásticas de um tempo anterior à “grande transformação”, quando a terra era habitada por uma espécie de mente brilhante que nos deu tanto e tanto nos tirou, mas que nos seus últimos dias viveu empacada em questões essenciais e decisivas para chegarmos até aqui. O resto é história para boi dormir.
http://www.revistabula.com/3503-o-amor-segundo-os-cavalos/
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