Enquanto lia seu voto desempatador sobre a admissibilidade dos embargos infringentes, o ministro Celso de Mello ajeitou a toga, empinou o nariz, soprou o pó da gramática e nos impôs uma arenga sobre a inutilidade do que chamou clamor popular. "Viram garotos? Entenderam o que estou dizendo? Agora sejam bonzinhos e vão brincar no quintal! Aqui na Corte se aplica as leis e se faz justiça".
Aos poucos, muito devagarzinho, pensei eu. Para os sem sorte nem padrinho... Aos 68 anos, minha audição não é mais a mesma, mas juro que não ouvi coisa alguma do tal clamor que o ministro diz ter escutado. Sei que você, leitor, também não ouviu. A tevê mostrou meia dúzia de gatos pingados à porta do STF. Estavam tão desajeitados! Quase solenes em seu silêncio. A solidão cívica roubou-lhes a voz. A lente da câmera os captou e seguiu adiante, bocejando.
No entanto, o ministro se referiu a clamor popular durante a leitura que fez, usando para isso várias páginas do seu voto. O que teria ele ouvido, que ninguém mais escutou? Ou visto, que ninguém mais percebeu? Sim, eu sei. Já me deparei antes com tais silêncios. Eles acontecem quando não são as cordas vocais que falam mas é a própria alma que geme, num misto de desalento e tristeza. Com dimensão multitudinária. Imagine, leitor, um estádio de futebol em dia de jogo importante. A equipe dona da casa encaminha o jogo para uma gratificante vitória. Por um gol de diferença. Mas no último minuto, no último lance, o derradeiro chute adversário encontra o caminho das redes. O silêncio que, sobre o alarido do estádio, cai instantaneamente sobre a multidão, tem um pouco, só um pouco disso que estou falando.
O que aconteceu no Brasil, no Brasil que ainda tinha esperança, foi algo muito mais poderoso e profundo. As pessoas gritavam interiormente a morte dessa esperança, num silêncio de cemitério. O mais triste, ministro, é que não houve clamor algum. Nem antes nem depois. Houve algo para si irrelevante, bem sei: a silenciosa frustração das melhores expectativas nacionais. Houve a lenta e penosa compreensão de que tudo quanto fora decidido meses antes não passara de imensa perda de tempo. E que os quatro votos então dados foram a conta certa ofertada às pessoas certas, para produzir o efeito certo no tempo certo. Errados, mesmo, apenas nós. Apenas nós que ainda teimávamos em crer que este país tivesse jeito.
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* Percival Puggina (68) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, membro do grupo Pensar+.
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