Fátima Oliveira
Uma “historinha” sobre falta de caráter, xenofobia e racismo de um médico idoso, que em nada difere de gente desprezível de outras profissões, pois o microcosmo das categorias profissionais é revelador das ideias dominantes numa sociedade de “racismo cordial”, onde ninguém se diz racista, só os outros são!
Na manhã de 1º de agosto passado, fui aos Correios do meu bairro com uma grande caixa para ser despachada. Como não havia lugar no balcão para a caixa de preciosidades para minha neta Clarinha, avisei a funcionária de que seria a próxima. Aguardei ao lado. Chegou a minha vez. Ao dizer: “Encomenda PAC”, um senhor todo pimpão, cabelos menos brancos que os meus, mas aparência de 70 e cacetada, fez de conta que eu não existia e entregou um envelope. Negra, aprendi a reagir quando fazem de conta que sou invisível.
Na maciota, mas firme, disse: “Senhor, é a minha vez! Estava na fila!”. E ele: “Isso aqui é rápido. É meu voto para o Conselho Regional de Medicina do Espírito Santo. Sabe o que é isso?”. Eu: “Senhor, espere! Estou sendo atendida!”. Ele: “Desculpe-me, não a vi! Sou muito educado! Pode passar, madame! Nordestino não respeita fila!”.
E o muito educado foi esbravejar no fim da fila: “Esse povo do Nordeste nem sabe o que é fila. Lá não existe isso. Conheço essa gente do meu consultório de ajudar pobres ali na favela. Há muitos desses nordestinos lá que eu ajudo! Favela não, que esse nome é discriminação e tá errado, da comunidade da Barragem Santa Lúcia. Sou caridoso. Atendo de graça lá. Ora, não vou me trocar com qualquer uma, sou médico, sou rico!”.
MOLEQUE SAFADO
Gargalhei e, com o sangue fervendo, detonei: “E moleque, safado, xenófobo e racista. E cale a boca: sou tão médica quanto o senhor, há quase 40 anos…”. Ele (mirando a negra que vos fala): “Será? Então sou médico há mais anos que você!”. Eu: “E daí? Tá pensando que medicina nasceu só para o senhor, que é branco e do Sudeste? Deixe de bestagem e de xenofobia. Vou chamar a polícia para o senhor deixar de ser safado. Suma daqui, seu moleque, se não quiser sair algemado. Chispa!”.
Assustadíssimo, tropeçou nos próprios pés e, tremendo como vara verde, saiu feito um azougue… “Já vai? Espera a polícia, quero ver tua riqueza te safar!”. Mas ele fugiu! O único temor foi de o sujeito ter ou simular uma “sapituca” e eu ter de socorrê-lo ali…
Quando um médico setentão diz o que disse, demonstra que há caráter de todo tipo em qualquer profissão. Não é surpresa que médicos jovens portem cartazes “sou médico, sou culto, sou rico”, que evidenciam uma faceta da desfaçatez reinante; nem é coisa de outro mundo, é daqui mesmo, a exibição do corredor polonês do banditismo do racismo ocorrido em Fortaleza, uma criminosa intimidação a médicos cubanos.
E Juan Merquiades Duvergel Delgado, médico, negro, cubano, tirou de letra: passou por ele – eternizando numa foto, que ganhou o mundo, a naturalização e a banalização do racismo brasileiro! Aliás, o maior mérito da importação de médicos, que oficializa a precarização do trabalho médico – pois até o governo solapa direitos trabalhistas e ainda quer aplausos –, é comprovar a falta de vergonha de ser racista sem medos!
Negro no Brasil vive num corredor polonês racista. Mas só negros percebem e sentem, como o aceite ou a omissão diante de práticas racistas institucionais, a exemplo do engavetamento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da População Negra, que não andou um milímetro em sua implementação no atual governo. “Pra quem sabe ler, um pingo é letra”. (transcrito de O Tempo)
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