Dorrit Harazim, O Globo
Nelson Mandela bem que merecia tratamento mais generoso neste crepúsculo de sua fértil, radiosa e decisiva vida pelos séculos 20 e 21. Uma figura pública tão idolatrada mundo afora e tão recatada na esfera privada deveria ter direito a cuidados especiais.
Pois as notícias vindas da África do Sul são ruins. O indefectível sorriso largo e suave já incorporado às suas feições, e que nenhum bípede sem a alegria de viver no DNA conseguiria simular ao longo de 94 anos, começa a dar apagões. Não tanto pela idade avançada ou saúde debilitada. Para ele, o mais difícil de digerir talvez seja o comportamento dos humanos à sua volta.
Uma dessas ocasiões pouco edificantes ocorreu no final do mês de abril. Fazia nove meses que o povo sul-africano não via imagens do seu adorado Madiba, devido a quatro preocupantes internações hospitalares em menos de um ano, e o líder histórico da luta contra o apartheid finalmente tivera alta.
Ocorreu então à cúpula do African National Congress (ACN), partido que Mandela liderou por décadas e que o elegera primeiro presidente negro do país, quase vinte anos atrás, aproveitar a ocasião e forçar uma visita a ser transmitida pela emissora estatal SABC.
O que se viu foi deprimente: nove integrantes da cúpula do partido aboletados atrás da poltrona de Mandela, e um, o presidente Jacob Zuma, sentado na poltrona ao lado, segurando a mão esquiva e rígida do Nobel da Paz.
A imagem tem um quê da foto montada em 1985 no Hospital de Base de Brasília para mostrar um presidente eleito (mas jamais empossado, pois morreu antes), Tancredo Neves, com a equipe médica.
No caso da encenação sul-africana, Mandela permaneceu impassível, com expressão soturna no olhar, mais por irritado. Os pedidos de sorrir para os smartphones dos visitantes foram respondidos com silêncio gélido.
Indignado, o clã familiar acusou os políticos de terem invadido a privacidade do patriarca, explorado sua fragilidade e procurado ganhar dividendos políticos. No entanto, quando chegou a sua vez de precisar de dividendos, não fez diferente.
Para desgosto de Mandela, chegou aos tribunais do país a disputa agora pública que duas das três filhas do ex-presidente travam com George Bizos, o amigo histórico e advogado de confiança do pai, pelo controle de dois fundos de investimento do patrimônio a ser herdado.
Apesar de ter sido o próprio Mandela que delegara plenos poderes de gestão a Bizos, as filhas contestam a validade dessa decisão e contestam a legitimidade gerencial nos fundos do advogado que defendeu Mandela da acusação de sabotagem e conspiração contra o Estado racista 50 anos atrás.
Até por ter passado 27 anos de sua vida preso, Mandela gostaria de prover um mínimo de segurança financeira para as filhas, 17 netos e 14 bisnetos. A julgar pelas amostras, contudo, a dilapidação será mais rápida.
De todo modo, em matéria de exposição pública da vida privada de um homem tão fidalgo, nada será tão doloroso como foi o fim de seu casamento com Winnie Mandela, sua segunda mulher. Vale recordar o que já foi descrito quinze anos atrás.
Desde sua libertação do cárcere de Robben Island, em 1990, Mandela constatara que o matrimônio que sobrevivera a 32 anos de luta mas conhecera apenas seis anos de convivência deixara de existir.
Durante a longa ausência do marido, Winnie fora presa várias vezes, continuara militando, passara a comandar a ala feminina do partido e se tornara admirada no país como a “Mãe da Pátria”. Adquiriu poder, cercou-se de guarda-costas e tornou-se polêmica.
Mandela procurou uma separação amigável, mas a vulcânica Winnie, à época já acusada de várias violações e irregularidades, não aceitou. Para não interferir no andamento dos vários processos a que a esposa respondia, o marido, já então eleito presidente da África do Sul pós apartheid, aguardou dois anos em silêncio.
Em 1996, recorreu à Corte Suprema de Johannesburgo. Durante dois intermináveis dias de audiências transmitidas ao vivo para um país eletrizado, Madiba recorreu em juízo ao argumento-chave que desejou não ter de usar: Winnie era adúltera, mantinha há anos um relacionamento com um jovem advogado do partido.
Raras vezes, nestes tempos de todo-mundo-conta-tudo, um adultério foi descrito com tanta mesura: “Fui o homem mais solitário durante o último período em que estivemos juntos... Winnie jamais vinha para o nosso quarto se eu estivesse acordado...”, resumiu. “Apelo à Corte para não me fazer perguntas que me obriguem a arranhar a imagem da acusada e a causar dor a nossas filhas e netos...”
Winnie ainda tentou um acordo de US$ 5 milhões em troca do divórcio. Renunciou a seu segundo mandato de deputada federal por envolvimento num escândalo fiscal e prestou testemunho perante a Comissão da Verdade e Reconciliação por várias acusações de violações de direitos humanos e abusos de poder. Atualmente está em seu terceiro mandato parlamentar.
Já Nelson Mandela foi tocar o que lhe restava de vida privada após o doloroso divórcio. Aos 77 anos, iniciou um romance com Graça Machel, a viúva do ex-presidente de Moçambique, 26 anos mais jovem, e com ela está casado até hoje.
A consagrada escritora sul-africana Nadine Gordimer assim define seu conterrâneo tantas vezes chamado de “santo secular”: “Mandela é dotado de total ausência de vaidade e orgulho. O que ele tem é respeito por si mesmo. Só pode dar-se a esse luxo a pessoa que sabe quem é e o que fez da vida. Mandela sabe.”
Merece, portanto, ser deixado sossegado, a sorrir da vida. No dia 18 do próximo mês o mundo comemora o “Mandela Day”, dia de seu 95º aniversário e data oficializada pela ONU desde 2009 para se pensar nos outros. Antecipadamente, o mundo lhe deseja um feliz aniversário. E que a disputa pelo espólio político e patrimonial seja, pelo menos, mais discreta.
Dorrit Harazim é jornalista.
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